O
Sola Scriptura frente à Hermenêutica
Filosófica de Hans-Georg Gadamer
A mais contundente
argumentação contra o Sola Scriptura parece não provir nem
de algum apologista católico, nem dos estudiosos das Ciências da
Religião, mas da Hermenêutica Filosófica de Hans-Georg Gadamer.
Hermenêutica pode ser
definida como a arte e técnica de interpretar, seja um texto
literário, normativo, religioso, seja uma obra de arte – estuda a
interpretação em geral. Gadamer estabelece uma teoria geral da
Hermenêutica em sua famosa obra Verdade e Método, lançada na
década de 1970. Gadamer defende que a compreensão não se dá sem
pré-conceitos, isto é, sem conceitos prévios do sujeito que
compreende, num processo dinâmico que ocorre no encontro do sujeito
com o objeto. Ele tem em mente desfazer o preconceito do Iluminismo
Alemão, que pretende que a compreensão é um ato puramente racional
e objetivo.
O Filósofo sustenta então
que há pré-conceitos ilegítimos mas há igualmente aqueles que são
legítimos. Ele apregoa que a autoridade e a tradição podem
conferir legitimidade aos conceitos prévios que utilizamos na nossa
compreensão. Ele mostra que a autoridade é algo conferido a alguém
por se reconhecer a essa pessoa precedência ou maior conhecimento
(como ocorre com a autoridade que se reconhece a um médico quando se
trata de determinar um diagnóstico patológico, para ilustrar seu
pensamento). Já a tradição é a autoridade que já se tornou
anônima sendo firmada e mantida pelas gerações seguintes. Ele
sustenta que a tradição, para permanecer, precisa ser mantida, o
que é tão voluntário quanto o ato de ruptura. Portanto pressupõe
uma ação dinâmica e histórica.
Gadamer critica a visão do
Iluminismo Alemão (Aufklarung) de opor autoridade e tradição
à razão, e para tanto apresenta um exemplo muito interessante. Ele
explica que para o Aufklarung a autoridade “é a culpada
de que nós não façamos uso da própria razão”.
Trata-se de uma “oposição excludente de autoridade e
razão.” (p. 416). Ele prossegue dizendo que o “Aufklarung
considera, por exemplo, que o grande feito reformador de Lutero
consiste em que ‘o preconceito do respeito humano, especialmente o
filosófico (referindo-se a Aristóteles) e o respeito ao papado
romano, ficou profundamente debilitado... ’” (p. 417, com
citação de Walch, Philosophische Lexicon, (1726), 1013). Ele expõe
o pensamento do Aufklarung, segundo o qual a “reforma
proporciona, assim, o florescimento da hermenêutica que deve ensinar
a usar corretamente a razão na compreensão da tradição”. E,
assim, para o Alfklarung nem “a autoridade do magistério
papal nem o apelo à tradição podem tornar supérflua a atividade
hermenêutica, cuja tarefa é defender o sentido razoável do texto
contra toda imposição” (p. 417).
No texto de Gadamer, esse é
apenas um exemplo da visão do Aufklarung que é veementemente
repelida pelo autor, que pretende justamente a “reabilitação
de autoridade e tradição” (título do item 2.1.2.a do seu
livro Verdade e Método, p. 416).
Leiamos algumas das palavras
do próprio autor para colhermos seu raciocínio:
Na realidade, não é a história que pertence a nós mas nós é que a ela pertencemos. Muito antes de que nós compreendamos a nós mesmos na reflexão, já estamos nos compreendendo de uma maneira auto-evidente na família, na sociedade e no Estado em que vivemos. A lente da subjetividade é um espelho deformante. A auto-reflexão do indivíduo não é mais que uma centelha na corrente cerrada da vida histórica. Por isso os preconceitos de um indivíduo são, muito mais que seus juízos, a realidade histórica de seu ser. (pp. 415-416).
O que, sob a ideia de uma autoconstrução absoluta da razão, se apresenta como um preconceito limitador, é parte integrante, na verdade, da própria realidade histórica. Se se quer fazer justiça ao modo de ser finito e histórico do homem, é necessário levar a cabo uma drástica reabilitação do conceito do preconceito e reconhecer que existem preconceitos legítimos. Com isso a questão central de uma hermenêutica verdadeiramente histórica, a questão epistemológica fundamental, pode ser formulada: em que pode basear-se a legitimidade de preconceitos? Em que se diferenciam os preconceitos legítimos de todos os inumeráveis preconceitos cuja superação representa a inquestionável tarefa de toda razão crítica? (p. 416).
A ideia de que os preconceitos que me determinam surgem da minha sujeição está formulada, na verdade, já a partir do ponto de vista de sua resolução e esclarecimento e só vale para os preconceitos não justificados.
Se existem também preconceitos justificados e que possam ser produtivos para o conhecimento, o problema da autoridade volta a nos ser colocado. (p. 418).
Na verdade, a autoridade é, em primeiro lugar, um atributo de pessoas. Mas a autoridade das pessoas não tem seu fundamento último num ato de submissão e de abdicação da razão, mas num ato de reconhecimento e de conhecimento: reconhece-se que o outro está acima de nós em juízo e perspectiva e que, por consequência, seu juízo precede, ou seja, tem primazia em relação ao nosso próprio. Junto a isso dá-se que a autoridade não se outorga, adquire-se, e tem de ser adquirida se a ela se quer apelar. Repousa sobre o reconhecimento e, portanto, sobre uma ação da própria razão que, tornando-se consciente de seus próprios limites, atribui a outro uma perspectiva mais acertada. Este sentido retamente entendido de autoridade não tem nada a ver com obediência cega de comando. Na realidade, autoridade não tem nada a ver com obediência, mas com conhecimento. (pp. 419-420).
O que é consagrado pela tradição e pela herança histórica possui uma autoridade que se tornou anônima, e nosso ser histórico e finito está determinado pelo fato de que também a autoridade do que foi transmitido, e não somente o que possui fundamentos evidentes, tem poder sobre essa base (...)” A realidade dos costumes, p.ex., é e continua sendo, em âmbitos bem vastos, algo válido a partir da herança histórica e da tradição. Os costumes são adotados livremente, mas não criados por livre inspiração nem sua validez nela se fundamenta. É isso, precisamente, que denominamos tradição: o fundamento de sua validez. (p. 421).
Parece-me, no entanto, que entre a tradição e a razão não existe nenhuma oposição que seja assim tão incondicional. (…) Na realidade, a tradição sempre é um momento da liberdade e da própria história. Também a tradição mais autêntica e venerável não se realiza naturalmente, em virtude da capacidade de permanência daquilo que, singularmente está aí, mas necessita ser afirmada, assumida e cultivada. A tradição é essencialmente conservação e como tal sempre está atuante nas mudanças históricas. No entanto, a conservação é um ato da razão, ainda que caracterizado pelo fato de não atrair a atenção sobre si. (…) Em todo caso, a conservação representa uma conduta tão livre como a destruição e a inovação. (pp. 422-423).
O que satisfaz nossa consciência histórica é sempre uma pluralidade de vozes nas quais ressoa o passado. Isso somente aparece na diversidade das ditas vozes: tal é a essência da tradição da qual participamos e queremos participar.” (p. 426).
A partir da teoria de Gadamer,
podemos concluir que a “Reforma” em geral, promovida
especialmente por Lutero e Calvino, não foi senão a formulação de
um cristianismo racionalista, que repudiou a Autoridade e a Tradição
da Igreja em favor de uma livre apreciação da Bíblia (Sola
Scriptura).
Porém, como os pré-conceitos
são inevitáveis em qualquer interpretação, Gadamer nos leva a
concluir que, inevitavelmente, eles não fizeram senão substituir a
Tradição e o Magistério (ensinamento com a Autoridade da Igreja)
pelas próprias convicções, embora apregoassem os substituir pela
Escritura (Sola Scriptura).
Daí o acerto dos Luteranos,
na Fórmula de Concórdia, em chamar o Catecismo Menor de Lutero de
“bíblia dos leigos”, ou seja, a interpretação de Lutero
da Escritura e não a própria Escritura. E daí o pleno acerto de
Voltaire em dizer que Calvino, o suposto “apóstolo de Genebra”,
arrogou-se a “papa dos protestantes”. Mazelas do Sola
Scriptura.