Por
que escrevo sobre (e contra) o Sola
Scriptura
Desde
que o Protestantismo surgiu na Alemanha, nos anos 1500, produziu uma
contínua e exponencial fragmentação do Cristianismo no Ocidente. O
mesmo se deu no Brasil, especialmente no final do século XX, quando
o Protestantismo avançou nessas terras antes predominantemente
católicas.
É
preciso reconhecer os pontos positivos do Protestantismo. Como sua
única regra de fé e de moral é o texto da sua Bíblia (sem alguns
livros que eram tradicionais no Cristianismo até então, e que são
mantidos pelos católicos), os protestantes sempre deram elevado
valor à tradução, difusão e estudo pessoal da Bíblia. Também
produziram vasta literatura teológica e sobretudo prática (o que de
certo modo é contraditório com o Sola
Scriptura),
além da música, e mesmo um estilo de vida teocêntrico.
Outros
pontos positivos do Protestantismo, particularmente no Brasil, foi o
Cristocentrismo, e a ênfase do Pentecostalismo na ação concreta e
cotidiana do Espírito Santo. Longe de concordar inteiramente com as
práticas e as pregações dos protestantes, é preciso reconhecer
que essa abordagem influenciou até mesmo os católicos a voltarem-se
mais para o Cristo e invocarem o Espírito Santo, sem, no entanto,
abandonar o que é próprio da tradição católica, especialmente a
veneração a Maria e aos Santos.
O
que é lamentável no Protestantismo em geral, e na expansão
protestante no Brasil em particular, é que esse desenvolvimento e
expansão se deu mediante, principalmente, a apostasia
(inapropriadamente chamada de conversão) dos católicos.
Não
se pode negar que os protestantes levaram a um cristianismo prático
muitos ex-católicos "de batismo" (ou nominais, que não
praticavam efetivamente a fé católica), muitos dos quais haviam se
perdido completamente, e já há muito não entravam numa igreja.
Entretanto,
não deixa de ser, especialmente no caso de "católicos
praticantes", colher onde outro semeou. Pois a apostasia desses
católicos que migraram para congregações protestantes é
decorrente de, primeiro, estes já acreditarem em Deus e em Jesus
Cristo, e, segundo, já reconhecerem que a Bíblia é o Livro Sagrado
do Cristianismo. A partir desses pressupostos o discurso pela
“conversão” do católico cuida simplesmente de convencer que o
Catolicismo não está em conformidade com a Bíblia enquanto Texto
Sagrado. Para isso, utiliza passagens bíblicas que enfatizam a
proibição de imagens e a exclusividade da mediação de Jesus
Cristo para a salvação dos homens, como forma de contestar a
veneração de Maria e dos Santos, ente outras crenças e práticas
católicas (que na verdade têm fundamento bíblico e são
confirmadas por tradições antiquíssimas, mas esse conhecimento nem
todos os católicos possuem).
Esse
discurso é embaraçoso para a maioria dos católicos, que nunca se
preocupou muito com esse tipo de contestação, tão comum era ser
católico e tão comuns e corriqueiras sempre foram no Brasil as
práticas católicas. Ao mesmo tempo, é um discurso, em geral,
convincente, pois aparentemente simples e objetivo.
Essa
prática e abordagem eram muito comuns nos anos 80, e especialmente
90. De uns anos para cá, parece ter diminuído. Talvez porque o
próprio movimento protestante no Brasil já tenha se expandido a um
ponto tal que segue agora um desenvolvimento mais calmo e estável.
Talvez porque a nova geração de protestantes brasileiros, quer
convertidos faz muito tempo, quer nascidos em ambiente protestante,
já não tenham o ardor missionário do novo converso, e até mesmo
já questionem práticas e posturas de sua tradição – e respeitem
outras tradições por isso. Talvez porque o movimento ecumênico
arrefeceu os ânimos, crescendo uma atitude de respeito mútuo.
Talvez porque os católicos que ainda se mantenham como tais já não
são tão pouco instruídos e tão "inocentes" quanto os
católicos de vinte anos atrás, e estão decididos a permanecer na
Igreja Católica Apostólica Romana. Provavelmente, tudo isso e muito
mais.
Infelizmente,
apesar de todos os esforços do Ecumenismo, continua essa atitude por
parte de alguns, que entendem que “converter” um fiel católico é
até uma missão dada por Deus.
A
religião, ou congregação, que cada um abraça e segue, é questão
de consciência pessoal. O Brasil é um país laico, sem religião
oficial, que preza a liberdade religiosa, de opinião e de culto, e é
bom que seja assim. Não cabe a quem quer que seja, em pleno século
XXI, querer impor uma religião, seita, ou opinião a terceiro,
senão, até certo ponto, pela via do convencimento e da
argumentação, que sempre devem ser respeitosas. Com efeito, a
liberdade religiosa é um direito, e a religião faz parte do
patrimônio pessoal de cada um. Portanto, a abordagem agressiva é um
desrespeito à pessoa, e pode ensejar reparação civil, e mesmo
sanção penal.
Em
outros termos, se alguém quer apostatar da fé católica, seja para
o Protestantismo, seja para outra religião, é questão que fica
entre a pessoa e Deus. E a consciência de cada um deve ser seu único
juiz neste mundo.
Entretanto,
é lamentável que católicos deixem a Igreja Católica Apostólica
Romana sem jamais terem-na conhecido realmente, e sem conhecerem
sequer o básico dos fundamentos da tradição protestante (tradições
talvez fosse mais adequado) e suas respectivas limitações. Deixam
uma tradição que nunca conheceram bem e vão para uma outra
tradição que não conhecem minimamente, muito menos criticamente.
Nesse
quadro é que emerge como da maior importância a questão do Sola
Scriptura
(somente a Escritura), isto é, somente a Bíblia como fonte de fé e
de moral.
Sola
Scriptura
é o princípio protestante adotado desde Lutero, Calvino e outros,
no início do movimento protestante, e que continua na base de todo o
Protestantismo, sendo até radicalizado pelas seitas ou congregações
mais novas e independentes.
O
Sola
Scriptura
foi adotado como forma de romper com a tradição católica. Com
efeito, a tradição católica reconhece a autoridade do Papa e da
Igreja. Sem romper com essa tradição, não seria possível
desprezar os ensinamentos e atos da Igreja Católica e romper com sua
estrutura como fizeram Lutero e Calvino ao apostatarem (pois eles
eram católicos). Ao adotarem a Bíblia como única fonte de fé e de
moral e darem a ela a sua própria interpretação (um dos
subprincípios do Sola
Scriptura
é o livre exame da Bíblia) eles criaram doutrinas diferentes da
Tradição Católica e romperam com a Igreja Católica Apostólica
Romana, rejeitando sua Autoridade, Tradição e Magistério.
O
Sola
Scriptura,
portanto, é o princípio fundamental do Protestantismo. Também é
praticamente o único ponto comum a todas as denominações
protestantes, embora se possa apontar variações na expressão
prática desse princípio.
E
é o Sola
Scriptura que
está no fundamento do discurso contra o Catolicismo tecido à base
de reiteradas citações de diversos trechos do texto bíblico.
O
grande erro dos católicos, que se sentem embaraçados diante desse
discurso, é que se esquecem de que a Igreja Católica Apostólica
Romana não segue o Sola
Scriptura,
assim como as Igrejas Ortodoxas Orientais que também vêm da época
dos apóstolos (Grega, Copta, Etíope, etc.).
O
outro grande erro dos católicos é não saber que o Sola
Scriptura
é um princípio muito questionável. A
meu ver há argumentos contundentes contra ele, mesmo sem recorrer à
Tradição e ao Magistério da Igreja. Vejo como muito mais simples a
defesa bíblica da Tradição Católica em si, do que a defesa do
princípio do Sola
Scriptura.
Por
isso escrevo sobre o Sola
Scriptura,
para ajudar a dissipar a ignorância, principalmente por parte dos
católicos. Não se trata de modo algum de entrar numa espécie de
luta por fiéis – que nem é a postura da Igreja Católica, no
Brasil ou no mundo. Dou aqui uma pequena contribuição a que os
católicos saibam que o discurso protestante não é tão óbvio
quanto pode até parecer em certos momentos.
Pelo
contrário, o que tenho constatado é que a aplicação prática do
Sola
Scriptura
vem encontrando dificuldades e divergências insuperáveis. Muito ao
contrário do projeto, até romântico, dos chamados "reformadores"
(Lutero, Calvino, e outros) a Bíblia sozinha não produziu unidade
de fé e de culto pela unidade do texto. O livre exame da Bíblia, e
nada mais que a Bíblia, produziu opiniões as mais diversas,
divisões e mais divisões. Na verdade, o abandono da Tradição
Católica, somente fez surgir milhares de novas tradições
protestantes.
Diversamente,
apesar dos 500 anos de crítica protestante, juntamente com as
críticas marxista, cientificista, ateísta e outras, a Igreja
Católica Apostólica Romana continua sólida, e unida em torno da
autoridade máxima neste mundo, o Papa, o servo dos servos de Deus,
sucessor de São Pedro, a rocha (Petrus)
sobre a qual o Cristo construiu a sua Igreja (Mateus 16,18).
Cledson
Moreira Galinari