segunda-feira, 23 de novembro de 2015

O SOLA SCRIPTURA FRENTE À HERMENÊUTICA FILOSÓFICA DE HANS-GEORG GADAMER

O Sola Scriptura frente à Hermenêutica Filosófica de Hans-Georg Gadamer

A mais contundente argumentação contra o Sola Scriptura parece não provir nem de algum apologista católico, nem dos estudiosos das Ciências da Religião, mas da Hermenêutica Filosófica de Hans-Georg Gadamer.

Hermenêutica pode ser definida como a arte e técnica de interpretar, seja um texto literário, normativo, religioso, seja uma obra de arte – estuda a interpretação em geral. Gadamer estabelece uma teoria geral da Hermenêutica em sua famosa obra Verdade e Método, lançada na década de 1970. Gadamer defende que a compreensão não se dá sem pré-conceitos, isto é, sem conceitos prévios do sujeito que compreende, num processo dinâmico que ocorre no encontro do sujeito com o objeto. Ele tem em mente desfazer o preconceito do Iluminismo Alemão, que pretende que a compreensão é um ato puramente racional e objetivo.

O Filósofo sustenta então que há pré-conceitos ilegítimos mas há igualmente aqueles que são legítimos. Ele apregoa que a autoridade e a tradição podem conferir legitimidade aos conceitos prévios que utilizamos na nossa compreensão. Ele mostra que a autoridade é algo conferido a alguém por se reconhecer a essa pessoa precedência ou maior conhecimento (como ocorre com a autoridade que se reconhece a um médico quando se trata de determinar um diagnóstico patológico, para ilustrar seu pensamento). Já a tradição é a autoridade que já se tornou anônima sendo firmada e mantida pelas gerações seguintes. Ele sustenta que a tradição, para permanecer, precisa ser mantida, o que é tão voluntário quanto o ato de ruptura. Portanto pressupõe uma ação dinâmica e histórica.

Gadamer critica a visão do Iluminismo Alemão (Aufklarung) de opor autoridade e tradição à razão, e para tanto apresenta um exemplo muito interessante. Ele explica que para o Aufklarung a autoridade “é a culpada de que nós não façamos uso da própria razão”. Trata-se de uma “oposição excludente de autoridade e razão.” (p. 416). Ele prossegue dizendo que o “Aufklarung considera, por exemplo, que o grande feito reformador de Lutero consiste em que ‘o preconceito do respeito humano, especialmente o filosófico (referindo-se a Aristóteles) e o respeito ao papado romano, ficou profundamente debilitado... ’” (p. 417, com citação de Walch, Philosophische Lexicon, (1726), 1013). Ele expõe o pensamento do Aufklarung, segundo o qual a “reforma proporciona, assim, o florescimento da hermenêutica que deve ensinar a usar corretamente a razão na compreensão da tradição”. E, assim, para o Alfklarung nem “a autoridade do magistério papal nem o apelo à tradição podem tornar supérflua a atividade hermenêutica, cuja tarefa é defender o sentido razoável do texto contra toda imposição” (p. 417).

No texto de Gadamer, esse é apenas um exemplo da visão do Aufklarung que é veementemente repelida pelo autor, que pretende justamente a “reabilitação de autoridade e tradição” (título do item 2.1.2.a do seu livro Verdade e Método, p. 416).

Leiamos algumas das palavras do próprio autor para colhermos seu raciocínio:

Na realidade, não é a história que pertence a nós mas nós é que a ela pertencemos. Muito antes de que nós compreendamos a nós mesmos na reflexão, já estamos nos compreendendo de uma maneira auto-evidente na família, na sociedade e no Estado em que vivemos. A lente da subjetividade é um espelho deformante. A auto-reflexão do indivíduo não é mais que uma centelha na corrente cerrada da vida histórica. Por isso os preconceitos de um indivíduo são, muito mais que seus juízos, a realidade histórica de seu ser. (pp. 415-416).

O que, sob a ideia de uma autoconstrução absoluta da razão, se apresenta como um preconceito limitador, é parte integrante, na verdade, da própria realidade histórica. Se se quer fazer justiça ao modo de ser finito e histórico do homem, é necessário levar a cabo uma drástica reabilitação do conceito do preconceito e reconhecer que existem preconceitos legítimos. Com isso a questão central de uma hermenêutica verdadeiramente histórica, a questão epistemológica fundamental, pode ser formulada: em que pode basear-se a legitimidade de preconceitos? Em que se diferenciam os preconceitos legítimos de todos os inumeráveis preconceitos cuja superação representa a inquestionável tarefa de toda razão crítica? (p. 416).

A ideia de que os preconceitos que me determinam surgem da minha sujeição está formulada, na verdade, já a partir do ponto de vista de sua resolução e esclarecimento e só vale para os preconceitos não justificados.
Se existem também preconceitos justificados e que possam ser produtivos para o conhecimento, o problema da autoridade volta a nos ser colocado. (p. 418).

Na verdade, a autoridade é, em primeiro lugar, um atributo de pessoas. Mas a autoridade das pessoas não tem seu fundamento último num ato de submissão e de abdicação da razão, mas num ato de reconhecimento e de conhecimento: reconhece-se que o outro está acima de nós em juízo e perspectiva e que, por consequência, seu juízo precede, ou seja, tem primazia em relação ao nosso próprio. Junto a isso dá-se que a autoridade não se outorga, adquire-se, e tem de ser adquirida se a ela se quer apelar. Repousa sobre o reconhecimento e, portanto, sobre uma ação da própria razão que, tornando-se consciente de seus próprios limites, atribui a outro uma perspectiva mais acertada. Este sentido retamente entendido de autoridade não tem nada a ver com obediência cega de comando. Na realidade, autoridade não tem nada a ver com obediência, mas com conhecimento. (pp. 419-420).

O que é consagrado pela tradição e pela herança histórica possui uma autoridade que se tornou anônima, e nosso ser histórico e finito está determinado pelo fato de que também a autoridade do que foi transmitido, e não somente o que possui fundamentos evidentes, tem poder sobre essa base (...)” A realidade dos costumes, p.ex., é e continua sendo, em âmbitos bem vastos, algo válido a partir da herança histórica e da tradição. Os costumes são adotados livremente, mas não criados por livre inspiração nem sua validez nela se fundamenta. É isso, precisamente, que denominamos tradição: o fundamento de sua validez. (p. 421).

Parece-me, no entanto, que entre a tradição e a razão não existe nenhuma oposição que seja assim tão incondicional. (…) Na realidade, a tradição sempre é um momento da liberdade e da própria história. Também a tradição mais autêntica e venerável não se realiza naturalmente, em virtude da capacidade de permanência daquilo que, singularmente está aí, mas necessita ser afirmada, assumida e cultivada. A tradição é essencialmente conservação e como tal sempre está atuante nas mudanças históricas. No entanto, a conservação é um ato da razão, ainda que caracterizado pelo fato de não atrair a atenção sobre si. (…) Em todo caso, a conservação representa uma conduta tão livre como a destruição e a inovação. (pp. 422-423).

O que satisfaz nossa consciência histórica é sempre uma pluralidade de vozes nas quais ressoa o passado. Isso somente aparece na diversidade das ditas vozes: tal é a essência da tradição da qual participamos e queremos participar.” (p. 426).

A partir da teoria de Gadamer, podemos concluir que a “Reforma” em geral, promovida especialmente por Lutero e Calvino, não foi senão a formulação de um cristianismo racionalista, que repudiou a Autoridade e a Tradição da Igreja em favor de uma livre apreciação da Bíblia (Sola Scriptura).

Porém, como os pré-conceitos são inevitáveis em qualquer interpretação, Gadamer nos leva a concluir que, inevitavelmente, eles não fizeram senão substituir a Tradição e o Magistério (ensinamento com a Autoridade da Igreja) pelas próprias convicções, embora apregoassem os substituir pela Escritura (Sola Scriptura).


Daí o acerto dos Luteranos, na Fórmula de Concórdia, em chamar o Catecismo Menor de Lutero de “bíblia dos leigos”, ou seja, a interpretação de Lutero da Escritura e não a própria Escritura. E daí o pleno acerto de Voltaire em dizer que Calvino, o suposto “apóstolo de Genebra”, arrogou-se a “papa dos protestantes”. Mazelas do Sola Scriptura.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

EXPRESSÕES DO SOLA SCRIPTURA - A DECLARAÇÃO DE CAMBRIDGE

3.2. Declaração de Cambridge (1996)

Mais recentemente, a Aliança de Evangélicos Confessionais (Alliance of Confessing Evangelicals), reunida em Cambridge, Massachusetts, em 20 de abril de 1996, elaborou uma declaração, visando resgatar os “5 Solas da Reforma Protestante”.

De acordo com o sítio virtual da Aliança:

A Aliança de Evangélicos Confessionais é uma ampla coalizão de pastores evangélicos, acadêmicos e clérigos de várias denominações, incluindo Batista, Congregacional (Independente), Anglicana (Episcopal), Presbiteriana, Reformada, e Luterana que sustentam os credos e confissões históricas da fé Reformada e que proclamam a doutrina bíblica, a fim de promover um despertar reformado na Igreja de hoje. O propósito da existência da Aliança é chamar a Igreja, em meio a uma cultura de morte, a arrepender-se de seu mundanismo, para recuperar e confessar a verdade da Palavra de Deus como fizeram os reformadores, e ver essa verdade encarnada na doutrina, culto e vida.
Who We Are”, disponível no endereço eletrônico http://www.alliancenet.org/what-is-the-alliance, tradução livre do inglês.

Sobre a Declaração de Cambridge explica um de seus elaboradores, James Montgomery Boice:

The Cambridge Declaration [A Declaração de Cambridge], que segue a este prefácio, e os oito trabalhos de apoio são os produtos da reunião histórica de 120 pastores, docentes e líderes evangélicos de organizações paraeclesiásticas realizada em Cambridge, Massachusetts, de 17 a 20 de abril de 1996. Acreditando que o movimento evangélico está em crise, essas pessoas se reuniram com a finalidade de convocar a igreja da América a se arrepender de seu mundanismo e buscar recuperar as doutrinas bíblicas apostólicas, porque só elas capacitam a igreja e proporcionam integridade para o seu testemunho. A reunião foi convocada pela Aliança de Evangélicos Confessionais (...).
Boice, James M. e outros, “Reforma hoje: uma convocação feita pelos evangélicos confessionais”, Cambuci: Cultura Cristã, 1999, p. 5.


Prossegue dizendo:


Nesses quatro dias de reuniões foram apresentados trabalhos sobre quatro assuntos: “Nossa Cultura Moribunda”, de David F. Wells e Ervin S. Duggan; “As Verdades da Palavra de Deus”, de R. Albert Mohler Jr. e Gene Edward Veith; “Arrependimento, Recuperação, e Confissão”, de Michael S. Horton e Sinclair B. Ferguson e “A Reforma da Igreja na Doutrina, Culto e Vida”, de W. Robert Godfrey e James M. Boice.
A Declaração de Cambridge, derivada desses trabalhos, foi preparada em sua forma preliminar por um comitê de redação da aliança, subseqüentemente trabalhada na conferência com base nas sugestões e críticas que surgiram quando da discussão dos temas apresentados nos trabalhos, e então assinada formalmente por quase todos os presentes à reunião de encerramento.
Várias pessoas envolvidas nessa reunião haviam trabalhado juntas, de 1978 a 1988, no Conselho Internacional sobre a Inerrância Bíblica. Mas em Cambridge o desafio foi bem maior do que qualquer coisa que se enfrentasse no Conselho de Inerrância. Este tivera um alvo claramente definido: recuperar e defender a inerrância como elemento essencial da doutrina da autoridade bíblica e como necessária à saúde da igreja. Além disso, era uma doutrina sobre a qual a maioria dos evangélicos devia estar de acordo. As tarefas do conselho foram, portanto, (1) mostrar que a maioria dos evangélicos cria na inerrância; (2) explicar como a inerrância e as doutrinas ligadas a ela devem ser compreendidas e (3) aplicar a doutrina aos desafios da época.
A tarefa proposta à aliança é mais dificil. Primeiro, não se trata de um ponto facilmente definido, como a inerrância, e sim, de toda uma perda de nível ou defecção doutrinária geral entre muitos assim chamados evangélicos. Segundo, este é um assunto sobre o qual não existe consenso evangélico. Pelo contrário, muitos nem percebem a existência de um problema, o que por si só já é grande parte do problema. Terceiro, a aliança está procurando expor este vácuo numa época em que muitas igrejas argumentam que seus sucessos mostram que os evangélicos estão no caminho certo e que as bênçãos de Deus são aparentes em todos os lugares. Os cultos são bem assistidos. Os orçamentos são amplos. Livros evangélicos, música, vídeos, programas de televisão e rádio gospel, bem como os grupos de estudo, estão em franco progresso.
Então o que há de errado com os evangélicos? A resposta é que nós nos tornamos mundanos. Abandonamos as verdades da Bíblia e a teologia histórica da igreja que expressa essas verdades, e estamos tentando fazer a obra de Deus por meio da “teologia”, da sabedoria, dos métodos e da agenda do mundo. Será que isso significa que os evangélicos negam a Bíblia ou voltam as costas oficialmente à doutrina clássica cristã? Não é bem isso. O que ocorre é que a teologia da Bíblia acaba não influindo significativamente sobre aquilo que pensamos ou fazemos – mesmo quando nós a entendemos, e quase nunca a entendemos. As pesquisas mostram que o evangelho que a maioria dos crentes contemporâneos segue é essencialmente Deus nos ajudando a nos ajudar. Tem muito a ver com a auto-estima, boas atitudes mentais e sucesso mundano. Não há muita pregação sobre o pecado, o inferno, o juízo, ou a ira de Deus, para não dizer sobre as grandes doutrinas da cruz como a redenção, a expiação, a reconciliação, a propiciação, a justificação, a graça, e a própria fé.
Na falta de uma teologia sadia, bíblica, bem entendida, os evangélicos foram apanhados como presa do pragmatismo e consumismo de nossos dias. Em vez de chamar o povo de Deus para adorar e servir a Deus, e ensiná-lo como fazer isso, tratamos as pessoas da igreja como compradores e vendemos o evangelho como um “produto”. Uma ótica mundial terapêutica substituiu as categorias cristãs clássicas tais como pecado e arrependimento, e muitos líderes já identificaram o evangelho com ídolos modernos tais como uma dada filosofia política, visões psicológicas do homem, e a sociologia. Até onde as doutrinas da Bíblia já deixaram de orientar a pregação, o ensino, a editoração, o evangelismo, o culto e a vida diária do povo de Deus, o evangelicalismo descambou para se tornar um movimento configurado unicamente pelo capricho e sentimentalismo popular. Para de novo se postarem reverentemente diante de Deus, os evangélicos precisam reconhecer esses ídolos como sendo ídolos, confessando o quanto fomos pegos por eles.
A Aliança de Evangélicos Confessionais crê que, dentre as verdades que os evangélicos precisam recuperar, as prioritárias são as grandes doutrinas da Reforma resumidas pelos conhecidos solas (a palavra em latirn que significa “somente”): sola Scriptura, sola fide, sola gratia, solus Christus, e soli Deo gloria.
Idem, pp. 5-7.


Falando em seguida resumidamente sobre o Sola Scriptura nesses termos:


Sola Scriptura: só a Escritura. Ao usar essas palavras, os Reformadores indicavam sua preocupação com a autoridade da Bíblia, e expressavam que a Bíblia é a única autoridade suprema -- não o papa, nem a igreja, nem tradições ou concílios de igreja, menos ainda intuições pessoais ou sentimentos subjetivos ---mas tão-somente a Escritura. Essas outras fontes de autoridade são por vezes úteis e talvez tenham seu lugar em certos casos, mas somente a Escritura é definitiva. Portanto, se qualquer dessas outras autoridades diferir dela, devem ser julgadas pela Bíblia e rejeitadas, e não o contrário. Sola Scriptura já foi chamado o princípio formal da Reforma, no sentido de que se posiciona no início de tudo e assim direciona e forma tudo que os cristãos afirmam como cristãos.
Os evangélicos negam sola Scriptura quando reinterpretam a Bíblia para que se ajuste às noções modernas de realidade, e quando ignoram seus ensinos com base em supostas revelações ou direcionamentos divinos particulares.
Idem, p. 7.


A primeira parte da Declaração de Cambridge trata justamente do Sola Scriptura, expressando-se nos seguintes termos:

Sola Scriptura: A Erosão da Autoridade
Só a Escritura é a regra inerrante da vida da igreja, mas a igreja evangélica atual fez separação entre a Escritura e sua função oficial. Na prática, a igreja é guiada, por vezes demais, pela cultura. Técnicas terapêuticas, estrategias de marketing, e o ritmo do mundo do entretenimento muitas vezes têm mais voz naquilo que a igreja quer, em como funciona, e no que oferece, do que a Palavra de Deus. Os pastores negligenciam a supervisão do culto, que lhes compete, inclusive o conteúdo doutrinário da música. À medida que a autoridade bíblica foi abandonada na prática, que suas verdades se enfraqueceram na consciência cristã, e que suas doutrinas perderam sua proeminência, a igreja foi cada vez mais esvaziada de sua integridade, autoridade moral e direcionamento.
Em lugar de adaptar a fé cristã para satisfazer as necessidades sentidas dos consumidores, devemos proclamar a Lei como medida única da justiça verdadeira, e o evangelho como a única proclamação da verdade salvadora. A verdade bíblica é indispensável para a compreensão, o desvelo e a disciplina da igreja.
A Escritura deve nos levar além de nossas necessidades percebidas para nossas necessidades reais, e libertar-nos do hábito de nos enxergar por meio das imagens sedutoras, clichês, promessas e prioridades da cultura massificada. É só à luz da verdade de Deus que nós nos entendemos corretamente e abrimos os olhos para a provisão de Deus para nossa necessidade. A Bíblia, portanto, precisa ser ensinada e pregada na igreja. Os sermões precisam ser exposições da Bíblia e de seus ensinos, não a expressão de opiniões ou ideias da época. Não devemos aceitar menos do que aquilo que Deus nos tem dado.
A obra do Espírito Santo na experiência pessoal não pode ser desvinculada da Escritura. O Espírito não fala em formas que independem da Escritura. À parte da Escritura nunca teríamos conhecido a graça de Deus em Cristo. A Palavra bíblica, e não a experiência espiritual, é o teste da verdade.
Tese 1: Sola Scriptura
Reafirmamos a Escritura inerrante como fonte única de revelação divina escrita, única para constranger a consciência. A Bíblia sozinha ensina tudo que é necessário para nossa salvação do pecado, e é o padrão pelo qual todo comportamento cristão deve ser avaliado.
Negamos que qualquer credo, concílio ou indivíduo possa constranger a consciência de um crente, que o Espírito Santo fale independentemente de, ou contrariando, o que está exposto na Bíblia, ou que a experiência espiritual pessoal possa ser veículo de revelação.
Boice, James M. e outros, “Reforma hoje: uma convocação feita pelos evangélicos confessionais”, Cambuci: Cultura Cristã, 1999, pp. 12-13.

A tese 1 começa com uma afirmação dúbia: “a Escritura inerrante como fonte única de revelação divina escrita”. Se é a única fonte escrita, então é possível que haja fontes não escritas. Seriam os evangélicos reconhecendo o valor da Tradição?

Entretanto, prossegue dizendo que a “Bíblia sozinha ensina tudo o que é necessário para nossa salvação do pecado, e é o padrão pelo qual todo comportamento cristão deve ser avaliado”, que, implicitamente, rejeita a Tradição e o Magistério da Igreja.

Enfim, afirma; “Negamos que qualquer credo, concílio ou indivíduo possa constranger a consciência de um crente”.

Aqui, de fato, é afirmado o Sola Scriptura, sem sombra de dúvida, especialmente no que respeita ao livre-exame.

O problema que emerge dessa declaração é o mesmo que já foi afirmado e reafirmado linhas atrás: se nenhum, credo, concílio ou indivíduo pode “constranger a consciência de um crente”, então tampouco o pode a mesma declaração que é subscrita pela Aliança…

E assim a doutrina do Sola Scriptura torna-se circular: nada pode obrigar a fé do crente a não ser a Bíblia – então essa doutrina mesma, então proclamada, de que somente a Bíblia pode impor os termos da crença cristã, também não o pode. A negativa de toda doutrina implica a negação da própria doutrina da negação.

No entanto, aderir a essa doutrina é condição para participar da Aliança em questão, e os “reformadores”, a quem se refere a Aliança ao declarar seus propósitos, não deixaram de perseguir e mesmo condenar à morte quem deles discordassem (é sabido que Calvino instituiu uma verdadeira polícia da fé em Genebra, e mandou dissidentes para a fogueira).

O Sola Scriptura, portanto, sustenta o livre exame da Escritura, até o ponto em que este questione aquele (ou qualquer outra doutrina estabelecida pela congregação, denominação, associação ou movimento).


Continua...

EXPRESSÕES DO SOLA SCRIPTURA - CONFISSÕES DE FÉ DO SÉCULO XX - ASSEMBLEIAS DE DEUS

III – Confissões de Fé do Século XX

3.1. Assembleias de Deus (1916)

Uma denominação bastante presente no Brasil, representante do tradicional pentecostalismo, é a “Assembleia de Deus”.

Sobre a sua história, o sítio virtual da Casa Publicadora das Assembleias de Deus (CPAD) conta:

A origem das Assembleias de Deus no Brasil está no fogo do reavivamento que varreu o mundo por volta de 1900, início do Século XX, especialmente na América do Norte. Os participantes desse reavivamento foram cheios do Espírito Santo da mesma forma que os discípulos e os seguidores de Jesus durante a Festa Judaica do Pentecostes, no início da Igreja Primitiva, conforme está escrito em Atos 2. Assim, eles foram chamados de “pentecostais”.
Exatamente como os crentes que estavam no Cenáculo, os precursores do reavivamento do Século XX falaram em outras línguas que não as suas originais quando receberam o batismo no Espírito Santo. Outras manifestações sobrenaturais tais como profecia, interpretação de línguas, conversões e curas também aconteceram.
Quando Daniel Berg e Gunnar Vingren chegaram a Belém do Pará, em 19 de novembro de 1910, ninguém poderia imaginar que aqueles dois jovens suecos estavam para iniciar um movimento que alteraria profundamente o perfil religioso e até social do Brasil por meio da pregação de Jesus Cristo como o único e suficiente Salvador da Humanidade e a atualidade do Batismo no Espírito Santo e dos dons espirituais. As igrejas existentes na época – Batista de Belém do Pará, Presbiteriana, Anglicana e Metodista - ficaram bastante incomodadas com a nova doutrina dos missionários, principalmente por causa de alguns irmãos que se mostravam abertos ao ensino pentecostal. A irmã Celina de Albuquerque, na madrugada do dia 18 de junho de 1911, foi a primeira crente a receber o batismo no Espírito Santo, o que não demorou a ocorrer também com outros irmãos.
O clima ficou tenso naquela comunidade, pois um número cada vez maior de membros curiosos visitava a residência de Berg e Vingren, onde realizavam reuniões de oração. Resultado: eles e mais dezenove irmãos acabaram sendo desligados da Igreja Batista. Convictos e resolvidos a se organizar, fundaram a Missão de Fé Apostólica em 18 de junho de 1911, que mais tarde, em 1918, ficou conhecida como Assembleia de Deus.
Em poucas décadas, a Assembleia de Deus, a partir de Belém do Pará, onde nasceu, começou a penetrar em todas as vilas e cidades até alcançar os grandes centros urbanos como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre.
Em virtude de seu fenomenal crescimento, os pentecostais começaram a fazer diferença no cenário religioso brasileiro. De repente, o clero católico despertou para uma possibilidade jamais imaginada: o Brasil poderia vir a tornar-se, no futuro, uma nação protestante.
A origem das Assembleias de Deus no Brasil”, disponível no endereço eletrônico http://www.editoracpad.com.br/assembleia/historia.php?i=2.

As Assembleias de Deus possuem uma declaração de fé elaborada pelo Conselho Geral das Assembleias de Deus (The General Council of the Assemblies of God), nos Estados Unidos, em 1916.

O texto em espanhol obtido no sítio virtual diz:

Declaração de Verdades Fundamentais
Desde o princípio, os líderes das Assembleias de Deus viram a necessidade de determinar algumas normas fundamentais. As dezesseis normas doutrinais que temos hoje são essencialmente as mesmas Verdades Fundamentais que se foram estabelecidas em 1916.
Tradução livre do texto em espanhol disponível em http://ag.org/top_spn/Beliefs/Our_Fundamental_Truths.cfm.

A Declaração inicia assim:

Nossa Declaração de Fé - As 16 Verdades Fundamentais
A Bíblia é a nossa regra completa e suficiente para fé e prática. Esta Declaração de Verdades Fundamentais tem o simples intuito de uma base de comunhão entre nós (isto é, que todos digamos a mesma coisa, 1Co 1.10; At 2.42). A fraseologia empregada nesta declaração, não é inspirada, nem reivindica tal. Mas a verdade exposta é considerada essencial para o ministério do Evangelho Pleno. Nenhuma reivindicação é feita de que ela contenha toda a verdade bíblica, somente que atende as nossas necessidades no tocante às doutrinas fundamentais.
Disponível em http://www.igrejavida.org/cremos.htm, onde conta que foi “Traduzido e adaptado de Statement of Fundamental Truths - The General Council of the Assemblies of God: 16 Fundamental Truths (www.ag.org)”.

No original:

Assemblies Of God Statement Of Fundamental Truths
The Bible is our all-sufficient rule for faith and practice. This Statement of Fundamental Truths is intended simply as a basis of fellowship among us (i.e., that we all speak the same thing, 1 Corinthians 1:10; Acts 2:42). The phraseology employed in this Statement is not inspired nor contended for, but the truth set forth is held to be essential to a full-gospel ministry. No claim is made that it covers all Biblical truth, only that it covers our need as to these fundamental doctrines.

Muito interessante uma cláusula no final do documento que diz:

A Declaração de Verdades Fundamentais é a delineação oficial das 16 doutrinas das Assembleias de Deus. Estas verdades são crenças não negociáveis a que todas as igrejas Assembleias de Deus aderem.
The General Council of the Assemblies of God, "Statement of Fundamental Truths", disponível no endereço eletrônico http://ag.org/top/Beliefs/Statement_of_Fundamental_Truths/sft.pdf, tradução livre do texto em inglês.

Portanto, além de proclamar o Sola Scriptura (“A Bíblia é a nossa regra completa e suficiente para fé e prática”), e embora afirme que a “fraseologia empregada nesta declaração, não é inspirada, nem reivindica tal”, resta declarado que trata-se de “crenças não negociáveis a que todas as igrejas Assembleias de Deus aderem”.

Ora, se são crenças não negociáveis, todas as igrejas Assembleias de Deus não só a elas aderem mas têm necessariamente de aderir ou estarão fora da comunhão das Assembleias de Deus. Entretanto, se somente a Bíblia é a “regra completa e suficiente para fé e prática” não cabe o acréscimo de uma declaração de fé inegociável...

Novamente, o Sola Scriptura presta-se a romper com a tradição e o magistério alheios, quer católicos quer de outros protestantes, mas apenas para a adoção de outras tradições e magistério, que não deixam de ser impostos como condição para a comunhão na congregação.


Continua...

sábado, 2 de maio de 2015

EXPRESSÕES DO SOLA SCRIPTURA - CONFISSÃO DE FÉ DE WESTMINSTER

2.4. Confissão de Fé de Westminster (1646)

A Confissão de Fé de Westminster é, ao que tudo indica, o que se pode chamar de um padrão protestante em termos de confissão de fé, ao menos no que se refere à proclamação do Sola Scriptura. Seu refinamento e sua influência exigem uma análise detida.

Conforme Beeke e Ferguson:

A confissão de fé produzida pelos teólogos de Westminster foi, sem dúvida alguma, um dos documentos mais influentes do período pós-Reforma da Igreja Cristã. É uma exposição cuidadosamente formulada da teologia reformada do século 17, e a serenidade das suas frases esconde a tempestuosidade do cenário político contra o qual ela foi escrita.
(…)
(…) Apesar das divergências, os teólogos verdadeiramente elaboraram um dos maiores documentos da história da igreja, que tem instruído, direcionado e influenciado profundamente as igrejas presbiterianas em todo o mundo desde então. A Confissão de Fé e o Breve Catecismo influenciaram o presbiterianismo mais profundamente do que as próprias Institutas de Calvino.
A Confissão de Fé de Westminster representa o ponto alto no desenvolvimento da teologia, e sua dinâmica espiritual está fortemente ligada ao pacto da Aliança.
Beeke, Joel R., e Ferguson, Sinclair B., “Harmonia das confissões de fé reformadas”, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. xiii.

Especificamente no que se refere ao Sola Scriptura, destacamos do primeiro capítulo, “Da Escritura Sagrada”, os seguintes artigos:

IV. A autoridade da Escritura Sagrada, razão pela qual deve ser crida e obedecida, não depende do testemunho de qualquer homem ou igreja, mas depende somente de Deus (a mesma verdade) que é o seu autor; tem, portanto, de ser recebida, porque é a palavra de Deus.
II Tim. 3:16; I João 5:9, I Tess. 2:13.
(...)
VI. Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela. À Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições dos homens; reconhecemos, entretanto, ser necessária a íntima iluminação do Espírito de Deus para a salvadora compreensão das coisas reveladas na palavra, e que há algumas circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja, comum às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras gerais da palavra, que sempre devem ser observadas.
II Tim. 3:15-17; Gal. 1:8; II Tess. 2:2; João 6:45; I Cor. 2:9, 10, 12; I Cor. 11:13-14.
VII. Na Escritura não são todas as coisas igualmente claras em si, nem do mesmo modo evidentes a todos; contudo, as coisas que precisam ser obedecidas, cridas e observadas para a salvação, em um ou outro passo da Escritura são tão claramente expostas e explicadas, que não só os doutos, mas ainda os indoutos, no devido uso dos meios ordinários, podem alcançar uma suficiente compreensão delas.
II Pedro 3:16; Sal. 119:105, 130; Atos 17:11.
(...)
IX. A regra infalível de interpretação da Escritura é a mesma Escritura; portanto, quando houver questão sobre o verdadeiro e pleno sentido de qualquer texto da Escritura (sentido que não é múltiplo, mas único), esse texto pode ser estudado e compreendido por outros textos que falem mais claramente.
At. 15:15; João 5:46; II Ped. 1:20-21.
X. O Juiz Supremo, pelo qual todas as controvérsias religiosas têm de ser determinadas e por quem serão examinados todos os decretos de concílios, todas as opiniões dos antigos escritores, todas as doutrinas de homens e opiniões particulares, o Juiz Supremo em cuja sentença nos devemos firmar não pode ser outro senão o Espírito Santo falando na Escritura.
Mat. 22:29, 31; At. 28:25; Gal. 1:10.
Confissão de Fé de Westminster”, disponível no sítio virtual Monergismo.com, no endereço eletrônico http://www.monergismo.com/textos/credos/cfw.htm, sem destaques no original.

O artigo IV trata da chamada auto-autenticação da Bíblia, rejeitando o papel da autoridade da Igreja (especialmente da Igreja Católica Apostólica Romana) em reunir e declarar autênticos os textos bíblicos.

O artigo VI já proclama o cerne do Sola Scriptura, ao dizer que “Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela”. Merece destaque o advérbio absoluto “todo”.

Mas o mesmo enunciado reconhece que há coisas que podem não estar expressamente na Bíblia, e que podem ser claramente deduzidas dela (implícitas).

A noção de que há princípios e mandamentos implícitos na Bíblia é uma visão realista e ponderada, mas, a rigor não é suficiente para afastar as tradições do Catolicismo. Na verdade, todos os ensinamentos do Igreja Católica Apostólica Romana, como se pode ver do respectivo Catecismo, entre outros documentos da Igreja, têm fundamento na Escritura, ora explícito, ora implícito, tendo sido confirmados pela Tradição, e reconhecidos pelo Magistério.

A prática tanto dos Presbiterianos quanto dos demais protestantes, entretanto, vem sendo bem mais restritiva, e a ideia de que há ensinamentos implícitos na Bíblia não é em geral bem vista pelos irmãos separados. O Fundamentalismo, que viria no final do Século XIX, é a expressão mais aprimorada dessa aversão, que destaca de modo visível a divisão entre Catolicismo e Protestantismo.

Prosseguindo, encontra-se no mesmo artigo a declaração de que à “Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições dos homens”.

A ideia aqui é, claramente, rejeitar a Tradição da Igreja Católica e seu Magistério.

Entretanto, a questão que surge, como visto, é se essas tradições não estão em conformidade à Bíblia, podendo ser a ela reconduzidas, e, portanto, reconhecidas como implicitamente determinadas ou, quando menos, permitidas pelo texto da Escritura.

Outro aspecto desse artigo: ele reconhece, prudentemente, que há coisas que não estão na Bíblia, como “quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja”, para as quais é necessária a prudente ordenação...

Aqui se vê que algum magistério eclesiástico é necessário e essa necessidade é reconhecida. Portanto, o que o documento reconhece implicitamente é que as tradições católicas serão apenas substituídas pelas calvinistas presbiterianas, segundo o juízo das respectivas autoridades eclesiásticas.

O artigo VII já trata da clareza da Bíblia, um outro subprincípio do Sola Scriptura, como o da auto-autenticação e o do livre exame – pois se a Bíblia não é clara, ou não se autentica a si mesma, ou precisa de um intérprete autêntico (com autoridade), o Magistério da Igreja e a Tradição são necessários, conforme sempre entendeu a Igreja Católica Apostólica Romana.

A Confissão de Fé de Westminster adota uma saída engenhosa para tentar driblar a realidade inevitável de que a Bíblia contém trechos de difícil entendimento, especialmente para pessoas tão distantes do mundo em que o texto foi escrito. Isso sem falar em muitos trechos, em princípio, incompatíveis entre si.

A saída adotada foi reconhecer que “não são todas as coisas igualmente claras em si, nem do mesmo modo evidentes a todos”, e, por outro lado, afirmar que “as coisas que precisam ser obedecidas, cridas e observadas para a salvação” estão em algum ponto da Escritura claramente expostas e acessíveis a qualquer um.

Como assinalado, é uma saída engenhosa, dizer que o essencial está claro. Assim, já que aquilo que é obscuro não tem importância, pode ser relegado a teólogos, especialistas, etc., que vão cuidar de coisas que não são tão relevantes, minúcias que nada alteram da “verdadeira doutrina”.

Engenhoso mas falho em vários aspectos. Afinal, se a Bíblia “é a palavra de Deus”, como está no artigo IV da mesma Confissão, então toda a Bíblia o é, e não apenas parte dela. Ora, como se pode desprezar partes dela então? Ademais, se um trecho é obscuro e não é compreendido, como saber se ele não muda o sentido do que é transmitido por outro trecho? Como conhecer o impacto desse texto em relação ao todo? Como saber que ele é realmente insignificante?

O artigo IX também proclama um subprincípio do Sola Scriptura ao rejeitar qualquer recurso externo para a interpretação da Bíblia, afirmando que “A regra infalível de interpretação da Escritura é a mesma Escritura”.

É uma crença de difícil defesa hoje, quando os próprios protestantes tendem a reconhecer a importância de ter em mente o contexto para o entendimento do texto bíblico, sabendo-se que o conhecimento do contexto depende de estudos extrabíblicos (História, Arqueologia, Geografia).

Ademais, não faltam partes entre si aparentemente contraditórias, sendo necessário um critério externo de compatibilização. Afinal, o que dizer por exemplo do mandamento de amar os inimigos e do extermínio dos povos de Canaã na época de Josué?

Fato é que enquanto as Sociedades Bíblicas do Século XIX insistiam em distribuir o texto da Bíblia sem quaisquer notas, que poderiam supostamente perverter o seu sentido (uma aplicação do Sola Scriptura à risca), hoje se multiplicam nas editoras voltadas às publicações da linha protestante as “Bíblias de Estudo”, em que o texto bíblico vem acompanhado de notas sobre o contexto e o sentido do texto (muito elogiáveis no geral, diga-se de passagem), ou como ele é entendido por determinado estudioso, ou como deve ser aplicado na vida prática.

É o que explica a Sociedade Bíblica do Brasil em relação à tradicionalíssima tradução de João Ferreira de de Almeida atualizada e publicada pela SBB:

Entretanto, essa tradição de incluir esboços e notas foi interrompida posteriormente. Com certeza isso se deveu, em grande parte, à prática adotada pela Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira, fundada em 1804, de “encorajar a mais ampla distribuição das Escrituras Sagradas, sem notas e sem comentários”. Porém, em meados do século XX, essa tendência passou a ser revertida, e as Sociedades Bíblicas Unidas, entre elas a Sociedade Bíblica do Brasil, passaram a publicar Bíblias com notas, destacando-se entre elas as Bíblias de Estudo. Em Bíblias de Estudo cujas notas são de responsabilidade exclusiva da Sociedade Bíblica, mantém-se o propósito de não entrar na discussão de doutrinas específicas desta ou daquela denominação cristã. O melhor exemplo disso é a Bíblia de Estudo Almeida.

Já a chamada “Bíblia Apologética de Estudo”, produzida pelo Instituto Cristão de Pesquisas, contém extensas notas que acompanham o texto bíblico a fim de defender a “ortodoxia” protestante contra as mais diversas “heresias” que reivindicam apoio nos mesmos textos.

Pelo visto, a clareza da Escritura, como subprincípio do Sola Scriptura, na prática, caiu em descrédito. Subsiste, é claro, no Fundamentalismo que, para poder se esconder dos resultados de uma interpretação crítica do texto bíblico, apoiada pela pesquisa histórica, prega uma interpretação literalista do texto, como será melhor examinado adiante.

O artigo X da Confissão de Fé de Westminster proclama o que se poderia chamar mais propriamente de “supremacia da Escritura” do que “somente a Escritura” (Sola Scriptura), ao afirmar (tal como Lutero) que o juiz de toda controvérsia religiosa, decretos de concílios, opiniões dos antigos escritores, doutrinas de homens e opiniões particulares “não pode ser outro senão o Espírito Santo falando na Escritura” (ou seja, o texto da Bíblia).

A questão que surge é óbvia: o texto não julga nada sem um juiz que o interprete.

Basta lembrar o que acontece com o texto da Constituição da República Federativa do Brasil (e acontece com qualquer outro país que tenha uma constituição escrita). Quando uma lei é aprovada seus autores supõem-na constitucional (caso contrário não a aprovariam). Mas frequentemente surgem vozes em sentido contrário e a lei é questionada na Justiça. A controvérsia precisa ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal agindo como Corte Constitucional. E não raras vezes as opiniões se dividem entre os próprios Ministros do STF.

O fato é que, como o texto da Constituição, o texto bíblico não pode julgar sem um intérprete (que na verdade é quem julga, embora se baseie no texto).

A História prova que a interpretação bíblica é complexa, e muitas conclusões contraditórias são por vezes sustentadas. A segmentação crescente do Protestantismo é a consequencia inevitável do livre exame.

Demais disso, existe uma diferença monstruosa entre o texto bíblico ser o “juiz” (seria melhor dizer critério, parâmetro, ou fundamento) e tudo necessariamente precisar ser determinado pela Bíblia.

Veja-se, a Constituição é o “juiz” (novamente, o parâmetro, o fundamento para o julgamento) de todas as leis do país, mas isso não significa que as leis, regulamentos, normas administrativas, não extendam o conteúdo do Ordenamento Jurídico criado pela Constituição. No entanto, são legítimos enquanto não lhe contrariem.

Novamente, o enunciado não é bastante para afastar as tradições e as doutrinas que se desenvolveram no âmbito católico, a não ser mediante uma interpretação particular da Escritura. Não é a Escritura o critério então, mas uma particular interpretação dela, que permitiu ao Presbiterianismo (pois tratamos aqui da Confissão de Fé de Westminster, de origem Presbiteriana), tal como o Luteranismo antes dele, e o Protestantismo em geral, afastar-se do Catolicismo.

Definitivamente, pelo exame da Confissão de Fé de Westminster, ao lado da doutrina luterana e das anteriores confissões “reformadas”, constata-se que o Protestantismo, efetivamente não substituiu a Tradição e o Magistério da Igreja Católica Apostólica Romana pela Bíblia, como sempre apontou o seu discurso. Substituiu-os sim por outras tradições e outros magistérios. O texto bíblico foi considerado fonte primária sim, mas interpretado sob a ótima de Lutero, Zuínglio, Calvino, e outros líderes protestantes que se seguiram.

Em todo caso, parece-nos que a Confissão de Fé de Westminster apresenta com clareza e honestidade o princípio do Sola Scriptura, com seu sentido, suas falhas e contradições. Sua doutrina marca indelevelmente o Protestantismo (não apenas o Presbiterianismo), mesmo quando suas proclamações não são integralmente acolhidas.


Continua...

sábado, 25 de abril de 2015

EXPRESSÕES DO SOLA SCRIPTURA - OS 39 ARTIGOS DA IGREJA ANGLICANA

2.3. Os Trinta e Nove Artigos da Igreja Anglicana (1563)

No rescaldo da “Reforma Protestante”, o surgimento da Igreja da Inglaterra (Anglicana) se deu de uma forma completamente diferente, tendo por motivo imediato o desentendimento do rei inglês com a Igreja Católica no que respeitava à anulação do seu casamento com sua então esposa.

Por isso destacamos os 39 artigos da Igreja Anglicana, já que tiveram uma origem muito diversa dos demais.

Vejamos:

Em 1563, foi escrito o grande documento da Reforma Anglicana: Os Trinta e Nove Artigos de Religião, que foram aprovados pelo Sínodo (na época de Rainha Maria I, os 42 Artigos foram revogados), modificando, parcialmente, os Quarenta e dois Artigos de Religião, documento este que demonstra a posição doutrinal da Igreja Anglicana em relação ao Catolicismo Romano e ao Protestantismo Reformado, sendo que evidenciou a “via média” deste ramo do Cristianismo, ficando conhecido como “Solução de Elizabeth”, pois Elizabeth I rejeitou o extremo de protestantismo e catolicismo romano e procurou a terceira opção. Nesse mesmo ano, a rainha Elizabeth I escreveu ao rei Ferdinando, regente católico-romano da Espanha, declarando que a Igreja da Inglaterra era a continuação da antiga Igreja Católica, mas não subserviente ao papa: “Nós, e nossos súditos, Deus seja louvado!, não somos seguidores de quaisquer religiões novas ou estrangeiras, mas a mesma religião que Cristo ordena, com as antigas sanções da Igreja Católica, as quais com a mente e a voz os mais antigos pais unanimemente aprovaram'.”
Em 1570, o Congresso aprovou os Trinta e Nove Artigos de Religião como o princípio que todos os ministros ordenados, universitários e os funcionários públicos devem aceitá-lo. Os 39 Artigos esclareceram a posição doutrinal da Igreja Anglicana diante da Igreja Romana e da Igreja Protestante.”
História do Anglicanismo”, disponível no sítio virtual da Igreja Anglicana do Brasil, em http://anglicanchurch.weebly.com/historia.html.

O Artigo VI trata “Da suficiência das Escrituras Sagradas para a Salvação”, e possui o seguinte texto:

A ESCRITURA Sagrada contém todas as coisas necessárias para a salvação; de maneira que tudo aquilo que nela não se lê, nem com ela se pode provar, não deve exigir-se de pessoa alguma que o creia como artigo de fé, nem deve julgar-se como requisito necessário para a salvação. Pelo nome de Escritura Sagrada entendemos aqueles livros canónicos do Antigo e do Novo Testamento, de cuja autoridade nunca houve qualquer dúvida na Igreja. Os livros chamados comumente “Os Apócrifos,” não formam parte das Escrituras Canónicas; e, portanto, não devem ser usados para estabelecer doutrina alguma; nem devem ser lidos publicamente na Igreja. Recebemos e contamos por canónicos todos os Livros do Novo Testamento, segundo comumente são recebidos.
Os Artigos da Religião Cristã”, disponível no sítio eletrônico da Igreja Anglicana Reformada do Brasil, em http://igrejaanglicana.com.br/os-39-artigos/, sem destaque no original.

Embora haja na expressão “tudo aquilo que nela [a Escritura] não se lê, nem com ela se pode provar, não deve exigir-se de pessoa alguma que o creia como artigo de fé”, uma efetiva proclamação do Sola Scriptura, não deixa de restar certa ambiguidade da declaração em relação à Tradição e ao Magistério da Igreja.

De fato, aparentemente a Igreja Anglicana, na prática, não segue o Sola Scriptura, tendo aderido à tríplice fonte de Escritura-Tradição-Razão, preconizada por Richard Hooker.

Sobre esse tema colhemos:

Toda a metodologia teológica anglicana se estrutura a partir do tripé de Hooker: Escritura – Tradição – Razão. O Rev. Richard Hooker viveu entre 1553-1600, em Londres. Ele foi ordenado na Igreja da Inglaterra e, posteriormente, nomeado pela rainha Elizabeth I como Mestre do Templo, tornando-o capelão da “Inns of Court”, uma parte fundamental do sistema de ensino jurídico Inglês. Depois de dez anos ele se mudou para uma paróquia país perto de Canterbury, onde, nos restantes cinco anos de sua vida, ele conseguiu pôr em marcha a sua magnum opus As Leis da Política Eclesiástica”. Esta obra marcou profundamente o pensamento inglês, influenciado inclusive o surgimento do liberalismo de John Look (1632-1704) que a cita diversas vezes. A obra de Hooker foi a primeira defesa sistemática da doutrina da Igreja da Inglaterra após a separação com Roma e por isso ele é considerado o primeiro grande teólogo anglicano. Até mesmo o Papa Clemente VIII (1536-1605) ficou impressionado com seu trabalho.
A obra de Hooker é amplamente reconhecida por afirmar que a teologia anglicana é baseada na “Escritura, Tradição e Razão”, indo tão longe a ponto de criar uma analogia com um “banquinho de três pernas”.
Ricardo, Rodson, “O que é Anglo-Catolicismo?”, disponível no endereço eletrônico http://grupojovemanglicano.blogspot.com.br/p/anglo-catoliscimo.html.

E ainda:

Escritura-Tradição-Razão: o Tripé de Hooker
O Rev. Richard Hooker, sacerdote inglês do século XVII, tem muito a contribuir ao modo de se fazer teologia anglicano. Na sua época, havia várias controvérsias de ordem teológica, as quais ele abordou de forma criativa e conclusiva.
Quanto ao papel das Escrituras Sagradas, Hooker evitou os dois extremos: a posição romana de que as Escrituras são insuficientes e que a Tradição deve suprir a insuficiência e a posição puritana de que é pecaminosa e ilegítima a liberdade da Igreja tomar decisões sobre o que as Escrituras silenciam.
Hooker refletiu sobre essa e outras matérias como fizeram seus contemporâneos levando em consideração a Bíblia, a Tradição, principalmente, a Igreja Primitiva, (a interpretação contínua das Escrituras, sua aplicação), e a Razão (o bom senso, o senso comum de um povo em determinado tempo e lugar, a capacidade humana de simbolizar, ordenar, compartilhar e comunicar a experiência).
Com Hooker e outros e com os Artigos houve a possibilidade de desenvolver a leitura crítica, histórica, contextual, e teologicamente trinitária e pastoral.
Takatsu, Sumio, “Existe uma teologia caracteristicamente anglicana?”, disponível no sítio eletrônico da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, endereço eletrônico http://www.ieab.org.br/ieab/index.php?option=com_content&task=view&id=33.

Considerando o exposto, a Igreja Anglicana, apesar de aparentemente haver proclamado o Sola Scriptura, não o adota efetivamente.


Continua...