2.4.
Confissão de Fé de Westminster (1646)
A
Confissão de Fé de Westminster é, ao que tudo indica, o que se
pode chamar de um padrão protestante em termos de confissão de fé,
ao menos no que se refere à proclamação do Sola
Scriptura.
Seu refinamento e sua influência exigem uma análise detida.
Conforme
Beeke e Ferguson:
A confissão de fé produzida
pelos teólogos de Westminster foi, sem dúvida alguma, um dos
documentos mais influentes do período pós-Reforma da Igreja Cristã.
É uma exposição cuidadosamente formulada da teologia reformada do
século 17, e a serenidade das suas frases esconde a tempestuosidade
do cenário político contra o qual ela foi escrita.
(…)
(…) Apesar das divergências,
os teólogos verdadeiramente elaboraram um dos maiores documentos da
história da igreja, que tem instruído, direcionado e influenciado
profundamente as igrejas presbiterianas em todo o mundo desde então.
A Confissão de Fé e o Breve Catecismo influenciaram o
presbiterianismo mais profundamente do que as próprias Institutas de
Calvino.
A Confissão de Fé de
Westminster representa o ponto alto no desenvolvimento da teologia, e
sua dinâmica espiritual está fortemente ligada ao pacto da Aliança.
Beeke, Joel R., e Ferguson,
Sinclair B., “Harmonia das confissões de fé reformadas”,
São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. xiii.
Especificamente
no que se refere ao Sola
Scriptura,
destacamos do primeiro capítulo, “Da
Escritura Sagrada”,
os seguintes artigos:
IV. A autoridade da Escritura
Sagrada, razão pela qual deve ser crida e obedecida, não depende do
testemunho de qualquer homem ou igreja, mas depende somente de Deus
(a mesma verdade) que é o seu autor; tem, portanto, de ser recebida,
porque é a palavra de Deus.
II Tim. 3:16; I João 5:9, I
Tess. 2:13.
(...)
VI. Todo o conselho de Deus
concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para
a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na
Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela. À
Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas
revelações do Espírito, nem por tradições dos homens;
reconhecemos, entretanto, ser necessária a íntima iluminação do
Espírito de Deus para a salvadora compreensão das coisas reveladas
na palavra, e que há algumas circunstâncias, quanto ao culto de
Deus e ao governo da Igreja, comum às ações e sociedades humanas,
as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência
cristã, segundo as regras gerais da palavra, que sempre devem ser
observadas.
II Tim. 3:15-17; Gal. 1:8; II
Tess. 2:2; João 6:45; I Cor. 2:9, 10, 12; I Cor. 11:13-14.
VII. Na Escritura não são
todas as coisas igualmente claras em si, nem do mesmo modo evidentes
a todos; contudo, as coisas que precisam ser obedecidas, cridas e
observadas para a salvação, em um ou outro passo da Escritura são
tão claramente expostas e explicadas, que não só os doutos, mas
ainda os indoutos, no devido uso dos meios ordinários, podem
alcançar uma suficiente compreensão delas.
II Pedro 3:16; Sal. 119:105,
130; Atos 17:11.
(...)
IX. A regra infalível de
interpretação da Escritura é a mesma Escritura; portanto, quando
houver questão sobre o verdadeiro e pleno sentido de qualquer texto
da Escritura (sentido que não é múltiplo, mas único), esse texto
pode ser estudado e compreendido por outros textos que falem mais
claramente.
At. 15:15; João 5:46; II Ped.
1:20-21.
X. O Juiz Supremo, pelo qual
todas as controvérsias religiosas têm de ser determinadas e por
quem serão examinados todos os decretos de concílios, todas as
opiniões dos antigos escritores, todas as doutrinas de homens e
opiniões particulares, o Juiz Supremo em cuja sentença nos devemos
firmar não pode ser outro senão o Espírito Santo falando na
Escritura.
Mat. 22:29, 31; At. 28:25;
Gal. 1:10.
O
artigo IV trata da chamada auto-autenticação da Bíblia, rejeitando
o papel da autoridade da Igreja (especialmente da Igreja Católica
Apostólica Romana) em reunir e declarar autênticos os textos
bíblicos.
O
artigo VI já proclama o cerne do Sola
Scriptura,
ao dizer que “Todo
o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a
glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é
expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente
deduzido dela”.
Merece destaque o advérbio absoluto “todo”.
Mas
o mesmo enunciado reconhece que há coisas que podem não estar
expressamente na Bíblia, e que podem ser claramente deduzidas dela
(implícitas).
A
noção de que há princípios e mandamentos implícitos na Bíblia é
uma visão realista e ponderada, mas, a rigor não é suficiente para
afastar as tradições do Catolicismo. Na verdade, todos os
ensinamentos do Igreja Católica Apostólica Romana, como se pode ver
do respectivo Catecismo, entre outros documentos da Igreja, têm
fundamento na Escritura, ora explícito, ora implícito, tendo sido
confirmados pela Tradição, e reconhecidos pelo Magistério.
A
prática tanto dos Presbiterianos quanto dos demais protestantes,
entretanto, vem sendo bem mais restritiva, e a ideia de que há
ensinamentos implícitos na Bíblia não é em geral bem vista pelos
irmãos separados. O Fundamentalismo, que viria no final do Século
XIX, é a expressão mais aprimorada dessa aversão, que destaca de
modo visível a divisão entre Catolicismo e Protestantismo.
Prosseguindo,
encontra-se no mesmo artigo a declaração de que à “Escritura
nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do
Espírito, nem por tradições dos homens”.
A
ideia aqui é, claramente, rejeitar a Tradição da Igreja Católica
e seu Magistério.
Entretanto,
a questão que surge, como visto, é se essas tradições não estão
em conformidade à Bíblia, podendo ser a ela reconduzidas, e,
portanto, reconhecidas como implicitamente determinadas ou, quando
menos, permitidas pelo texto da Escritura.
Outro
aspecto desse artigo: ele reconhece, prudentemente, que há coisas
que não estão na Bíblia, como “quanto
ao culto de Deus e ao governo da Igreja”,
para as quais é necessária a prudente ordenação...
Aqui
se vê que algum magistério eclesiástico é necessário e essa
necessidade é reconhecida. Portanto, o que o documento reconhece
implicitamente é que as tradições católicas serão apenas
substituídas pelas calvinistas presbiterianas, segundo o juízo das
respectivas autoridades eclesiásticas.
O
artigo VII já trata da clareza da Bíblia, um outro subprincípio do
Sola Scriptura,
como o da auto-autenticação e o do livre exame – pois se a Bíblia
não é clara, ou não se autentica a si mesma, ou precisa de um
intérprete autêntico (com autoridade), o Magistério da Igreja e a
Tradição são necessários, conforme sempre entendeu a Igreja
Católica Apostólica Romana.
A
Confissão de Fé de Westminster adota uma saída engenhosa para
tentar driblar a realidade inevitável de que a Bíblia contém
trechos de difícil entendimento, especialmente para pessoas tão
distantes do mundo em que o texto foi escrito. Isso sem falar em
muitos trechos, em princípio, incompatíveis entre si.
A
saída adotada foi reconhecer que “não
são todas as coisas igualmente claras em si, nem do mesmo modo
evidentes a todos”,
e, por outro lado, afirmar que “as
coisas que precisam ser obedecidas, cridas e observadas para a
salvação”
estão em algum ponto da Escritura claramente expostas e acessíveis
a qualquer um.
Como
assinalado, é uma saída engenhosa, dizer que o essencial está
claro. Assim, já que aquilo que é obscuro não tem importância,
pode ser relegado a teólogos, especialistas, etc., que vão cuidar
de coisas que não são tão relevantes, minúcias que nada alteram
da “verdadeira doutrina”.
Engenhoso
mas falho em vários aspectos. Afinal, se a Bíblia “é
a palavra de Deus”,
como está no artigo IV da mesma Confissão, então toda a Bíblia o
é, e não apenas parte dela. Ora, como se pode desprezar partes dela
então? Ademais, se um trecho é obscuro e não é compreendido, como
saber se ele não muda o sentido do que é transmitido por outro
trecho? Como conhecer o impacto desse texto em relação ao todo?
Como saber que ele é realmente insignificante?
O
artigo IX também proclama um subprincípio do Sola
Scriptura
ao rejeitar qualquer recurso externo para a interpretação da
Bíblia, afirmando que “A
regra infalível de interpretação da Escritura é a mesma
Escritura”.
É
uma crença de difícil defesa hoje, quando os próprios protestantes
tendem a reconhecer a importância de ter em mente o contexto para o
entendimento do texto bíblico, sabendo-se que o conhecimento do
contexto depende de estudos extrabíblicos (História, Arqueologia,
Geografia).
Ademais,
não faltam partes entre si aparentemente contraditórias, sendo
necessário um critério externo de compatibilização. Afinal, o que
dizer por exemplo do mandamento de amar os inimigos e do extermínio
dos povos de Canaã na época de Josué?
Fato
é que enquanto as Sociedades Bíblicas do Século XIX insistiam em
distribuir o texto da Bíblia sem quaisquer notas, que poderiam
supostamente perverter o seu sentido (uma aplicação do Sola
Scriptura
à risca), hoje se multiplicam nas editoras voltadas às publicações
da linha protestante as “Bíblias de Estudo”, em que o texto
bíblico vem acompanhado de notas sobre o contexto e o sentido do
texto (muito elogiáveis no geral, diga-se de passagem), ou como ele
é entendido por determinado estudioso, ou como deve ser aplicado na
vida prática.
É
o que explica a Sociedade Bíblica do Brasil em relação à
tradicionalíssima tradução de João Ferreira de de Almeida
atualizada e publicada pela SBB:
Entretanto, essa tradição de
incluir esboços e notas foi interrompida posteriormente. Com certeza
isso se deveu, em grande parte, à prática adotada pela Sociedade
Bíblica Britânica e Estrangeira, fundada em 1804, de “encorajar a
mais ampla distribuição das Escrituras Sagradas, sem notas e sem
comentários”. Porém, em meados do século XX, essa tendência
passou a ser revertida, e as Sociedades Bíblicas Unidas, entre elas
a Sociedade Bíblica do Brasil, passaram a publicar Bíblias com
notas, destacando-se entre elas as Bíblias de Estudo. Em Bíblias de
Estudo cujas notas são de responsabilidade exclusiva da Sociedade
Bíblica, mantém-se o propósito de não entrar na discussão de
doutrinas específicas desta ou daquela denominação cristã. O
melhor exemplo disso é a Bíblia de Estudo Almeida.
Já
a chamada “Bíblia
Apologética de Estudo”,
produzida pelo Instituto Cristão de Pesquisas, contém extensas
notas que acompanham o texto bíblico a fim de defender a “ortodoxia”
protestante contra as mais diversas “heresias” que reivindicam
apoio nos mesmos textos.
Pelo
visto, a clareza da Escritura, como subprincípio do
Sola Scriptura,
na prática, caiu em descrédito. Subsiste, é claro, no
Fundamentalismo que, para poder se esconder dos resultados de uma
interpretação crítica do texto bíblico, apoiada pela pesquisa
histórica, prega uma interpretação literalista do texto, como será
melhor examinado adiante.
O
artigo X da Confissão de Fé de Westminster proclama o que se
poderia chamar mais propriamente de “supremacia da Escritura” do
que “somente a Escritura” (Sola
Scriptura),
ao afirmar (tal como Lutero) que o juiz de toda controvérsia
religiosa, decretos de concílios, opiniões dos antigos escritores,
doutrinas de homens e opiniões particulares “não
pode ser outro senão o Espírito Santo falando na Escritura”
(ou seja, o texto da Bíblia).
A
questão que surge é óbvia: o texto não julga nada sem um juiz que
o interprete.
Basta
lembrar o que acontece com o texto da Constituição da República
Federativa do Brasil (e acontece com qualquer outro país que tenha
uma constituição escrita). Quando uma lei é aprovada seus autores
supõem-na constitucional (caso contrário não a aprovariam). Mas
frequentemente surgem vozes em sentido contrário e a lei é
questionada na Justiça. A controvérsia precisa ser julgada pelo
Supremo Tribunal Federal agindo como Corte Constitucional. E não
raras vezes as opiniões se dividem entre os próprios Ministros do
STF.
O
fato é que, como o texto da Constituição, o texto bíblico não
pode julgar sem um intérprete (que na verdade é quem julga, embora
se baseie no texto).
A
História prova que a interpretação bíblica é complexa, e muitas
conclusões contraditórias são por vezes sustentadas. A segmentação
crescente do Protestantismo é a consequencia inevitável do livre
exame.
Demais
disso, existe uma diferença monstruosa entre o texto bíblico ser o
“juiz” (seria melhor dizer critério, parâmetro, ou fundamento)
e tudo necessariamente precisar ser determinado pela Bíblia.
Veja-se,
a Constituição é o “juiz” (novamente, o parâmetro, o
fundamento para o julgamento) de todas as leis do país, mas isso não
significa que as leis, regulamentos, normas administrativas, não
extendam o conteúdo do Ordenamento Jurídico criado pela
Constituição. No entanto, são legítimos enquanto não lhe
contrariem.
Novamente,
o enunciado não é bastante para afastar as tradições e as
doutrinas que se desenvolveram no âmbito católico, a não ser
mediante uma interpretação particular da Escritura. Não é a
Escritura o critério então, mas uma particular interpretação
dela, que permitiu ao Presbiterianismo (pois tratamos aqui da
Confissão de Fé de Westminster, de origem Presbiteriana), tal como
o Luteranismo antes dele, e o Protestantismo em geral, afastar-se do
Catolicismo.
Definitivamente,
pelo exame da Confissão de Fé de Westminster, ao lado da doutrina
luterana e das anteriores confissões “reformadas”, constata-se
que o Protestantismo, efetivamente não substituiu a Tradição e o
Magistério da Igreja Católica Apostólica Romana pela Bíblia, como
sempre apontou o seu discurso. Substituiu-os sim por outras tradições
e outros magistérios. O texto bíblico foi considerado fonte
primária sim, mas interpretado sob a ótima de Lutero, Zuínglio,
Calvino, e outros líderes protestantes que se seguiram.
Em
todo caso, parece-nos que a Confissão de Fé de Westminster apresenta com clareza e honestidade o princípio do Sola
Scriptura,
com seu sentido, suas falhas e contradições. Sua doutrina marca
indelevelmente o Protestantismo (não apenas o Presbiterianismo),
mesmo quando suas proclamações não são integralmente acolhidas.
Continua...