Muitos são os que tentam
apontar versículos bíblicos específicos para sustentar o princípio
protestante da Autoridade Única (ou Última) das Escrituras,
conhecido pela expressão latina Sola Scriptura (somente a
Bíblia). Outros tantos intentam dizer que essa doutrina encontra-se
implícita em tal ou qual aspecto da Bíblia. Neste artigo, pretendo
mostrar que o Sola Scriptura é incompatível com a maneira
como o Novo Testamento foi escrito, que o insere necessariamente
dentro de uma Tradição que, embora nele se tenha parcialmente
condensado, dando-lhe forma, necessariamente lhe ultrapassa.
Inicialmente, precisamos nos
transpor à Palestina no tempo da pregação de Nosso Senhor Jesus
Cristo. Aquele admirável Rabi, grande em palavras e obras, ensinava
abertamente, nas praças, sinagogas e no Templo, conforme atestam os
evangelhos. Seus discípulos, especialmente aqueles doze conhecidos
como apóstolos, foram chamados a uma intensa convivência integral
com Ele, em que aprendiam não apenas aquilo que Ele explicava às
multidões, mas ainda mais. Foram três intensos anos de aprendizado.
E ao final, após ressuscitar dos mortos, NSJC os incumbiu de ir até
os confins do mundo para pregar a boa nova e fazer seus discípulos
em todas as nações.
Essa determinação,
entretanto, somente veio a ser implementada depois do Pentecostes,
quando os apóstolos receberam o Espírito Santo no Cenáculo, e
pregaram à multidão de diversos povos e línguas reunida em
Jerusalém.
Desse dia em diante, narra o
livro dos Atos dos Apóstolos, eles se espalharam, foram aos mais
diversos lugares daquele tempo. Destaque é dado a São Paulo,
constituído apóstolo dos gentios pelo próprio Cristo, viajou
incansavelmente e sem temor, apesar dos perigos, pelo Oriente Médio,
Grécia, Macedônia e mesmo Roma. Sempre anunciando as Boas Novas de
Jesus Cristo. E os Atos dos Apóstolos, escrito por seu companheiro,
o médico São Lucas, narra em detalhe boa parte de sua vida.
Como sabemos, os Apóstolos,
como Pedro, João, Mateus, Judas, Tiago, e seus discípulos, como
Lucas e Marcos, escreveram os documentos preciosíssimos que foram
reunidos e ganharam o nome de Novo Testamento, em comparação com os
livros dos judeus que fizeram parte do Antigo Testamento, e ambos os
conjuntos foram reunidos num todo que hoje conhecemos como Bíblia,
palavra grega que significa livros, biblioteca.
De fato, a importância desses
livros é imensa, e os cristãos sempre os viram como sagrados,
devido à sua origem e seu conteúdo, pois condensam parte dos
ensinamento dos Apóstolos. E esse é o ponto em questão aqui, parte
desse ensinamento, não todo ele.
Primeiro, repare que, conforme
os Evangelhos, Jesus pregou, oralmente e com seus gestos e sua vida,
e mandou pregar. E nós vemos nos Atos dos Apóstolos a mesma
atitude: os Apóstolos e discípulos pregando, oralmente e mediante o
exemplo de suas vidas.
Repare também que em nenhum
momento, quer nas narrativas dos Evangelhos, quer na narrativa dos
Atos dos Apóstolos, menciona-se que NSJC ou algum dos Apóstolos ou
seus discípulos escrevia seus ensinamentos. Isso não acontece
porque eles, os Apóstolos e discípulos, nada tenham escrito, nem
que seus escritos não sejam importantes, são preciosíssimos e
sempre foram vistos como tais, conforme atestam os mais antigos
textos patrísticos.
Essa omissão, então, deve
ser vista como decorrente de ser a escrita desses documentos uma
atividade secundária.
De fato, os Apóstolos
pregaram como Jesus havia pregado, e não ficaram em escritórios
escrevendo tratados, cartas e panfletos a serem levados aos lugares
mais distantes. Eles cumpriram o mandamento de NSJC indo pregar a
todas nações. E sabemos que eles chegaram a lugares distantes como
a Índia, e até mesmo à China.
Mas porque então escreveram
se deviam pregar e se dedicaram a isso de corpo e alma, e morreram
por isso?
Embora um meio menos eficaz de
transmitir ideias fidedignamente (qualquer pessoa que escreve sabe
honestamente disso), a escrita é o único meio existente naquela
época para transmitir algo a quem está longe, a quem não se pode
ver pessoalmente para falar. Ademais, o texto pode ser copiado e
replicado, e então pode ir a vários lugares ao mesmo tempo, o que
uma pessoa não pode fazer. Por isso os Apóstolos e discípulos
escreveram o que está no nosso NT.
As Cartas (Epístolas)
contidas no NT, especialmente as de São Paulo, atestam isso muito
claramente. Paulo sempre escreve referindo-se a uma visita pretérita
ou ao desejo de visitar a comunidade destinatária, e normalmente
lamenta em suas cartas não poder falar pessoalmente sua mensagem.
Suas cartas são sempre episódicas, tratam de assuntos atuais e
urgentes da comunidade de que teve notícia, e que requerem
orientação. Elas não têm nunca o aspecto de tratado ou de
panfleto, de meios de pregação para substituir sua pregação oral,
amplamente narrada nos Atos dos Apóstolos, mas apenas um meio de
suprir sua inevitável ausência na comunidade quando assuntos
urgentes demandam seu posicionamento.
Mesmo nos Evangelhos
encontramos traços dessa escrita episódica e secundária em relação
à atividade pregadora. São Lucas incia o seu Evangelho com um
endereçamento à maneira de uma carta a alguém que já conhecia a
Boa Nova, expressamente referindo à finalidade de reforçar a sua fé
(Lc 1,3-4). O Evangelho de São João foi, segundo a opinião
praticamente unânime dos estudiosos, o último a ser escrito, é
claramente o Evangelho da maturidade do Apóstolo, e em 20,31 o autor
deixa transparecer sua intenção de reforçar a fé daquele que o
ler; e, no versículo final, o Apóstolo adverte a limitação do que
foi escrito.
Mesmo o Evangelho de Marcos, o
mais breve e direto, que se acredita tenha sido o primeiro dos quatro
a ser escrito (ainda assim provavelmente após as primeiras cartas
paulinas), seria, segundo se pensa e efetivamente parece, o resumo da
pregação de São Pedro Apóstolo, a real testemunha ocular dos
acontecimentos narrados. Portanto, um documento escrito para que
elementos importantes dessa pregação não se perdessem, mas não um
substituto da pregação.
O próprio encerramento dos
Evangelhos de Marcos e de Mateus, destacando o comissionamento (ide,
pregai), assim como a atividade missionária (Marcos: “pregaram por
todas as partes”), nos mostra não apenas secundarem estes textos à
pregação, como já referimos, mas a intenção do escrito de
suportar essa atividade, inclusive “credenciando” o pregador como
enviado de Jesus Cristo, enviado de Deus, que os enviou expressamente
no final de sua missão na Terra.
Paralelamente, enquanto o NT
nada menciona da escrita dos textos, muito menciona da pregação
oral, e de como essa pregação foi sendo repassada por novos
comissionados constituídos pelos Apóstolos. Pois além do ide,
pregai, dos Evangelhos, vemos nos Atos dos Apóstolos a constituição
de homens de Deus para serem chefes e servos das igrejas locais
(bispos, presbíteros, diáconos, como em 1 Timóteo e outros), e a
ordem de transmitir a outros o que foi recebido (2 Tm 2,2).
O Novo Testamento em
particular, e a Bíblia de uma maneira geral, são importantíssimos,
preciosíssimos livros sagrados que sustentam e reforçam a nossa fé,
devem ser lidos, estudados, apreciados, devem fazer parte de nosso
cotidiano. Mas se inserem num contexto mais amplo, de uma Tradição,
isto é, do ensinamento que se transmitiu de boca em boca, do Mestre
aos Apóstolos, dos Apóstolos aos discípulos, desses para os
próximos, até hoje. Noutras palavras, Tradição transmitida na
vida da Igreja. A Bíblia é parte dessa Tradição, mas, por
definição, dada pelo contexto de sua redação e história, não
toda ela.