sábado, 2 de maio de 2015

EXPRESSÕES DO SOLA SCRIPTURA - CONFISSÃO DE FÉ DE WESTMINSTER

2.4. Confissão de Fé de Westminster (1646)

A Confissão de Fé de Westminster é, ao que tudo indica, o que se pode chamar de um padrão protestante em termos de confissão de fé, ao menos no que se refere à proclamação do Sola Scriptura. Seu refinamento e sua influência exigem uma análise detida.

Conforme Beeke e Ferguson:

A confissão de fé produzida pelos teólogos de Westminster foi, sem dúvida alguma, um dos documentos mais influentes do período pós-Reforma da Igreja Cristã. É uma exposição cuidadosamente formulada da teologia reformada do século 17, e a serenidade das suas frases esconde a tempestuosidade do cenário político contra o qual ela foi escrita.
(…)
(…) Apesar das divergências, os teólogos verdadeiramente elaboraram um dos maiores documentos da história da igreja, que tem instruído, direcionado e influenciado profundamente as igrejas presbiterianas em todo o mundo desde então. A Confissão de Fé e o Breve Catecismo influenciaram o presbiterianismo mais profundamente do que as próprias Institutas de Calvino.
A Confissão de Fé de Westminster representa o ponto alto no desenvolvimento da teologia, e sua dinâmica espiritual está fortemente ligada ao pacto da Aliança.
Beeke, Joel R., e Ferguson, Sinclair B., “Harmonia das confissões de fé reformadas”, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. xiii.

Especificamente no que se refere ao Sola Scriptura, destacamos do primeiro capítulo, “Da Escritura Sagrada”, os seguintes artigos:

IV. A autoridade da Escritura Sagrada, razão pela qual deve ser crida e obedecida, não depende do testemunho de qualquer homem ou igreja, mas depende somente de Deus (a mesma verdade) que é o seu autor; tem, portanto, de ser recebida, porque é a palavra de Deus.
II Tim. 3:16; I João 5:9, I Tess. 2:13.
(...)
VI. Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela. À Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições dos homens; reconhecemos, entretanto, ser necessária a íntima iluminação do Espírito de Deus para a salvadora compreensão das coisas reveladas na palavra, e que há algumas circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja, comum às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras gerais da palavra, que sempre devem ser observadas.
II Tim. 3:15-17; Gal. 1:8; II Tess. 2:2; João 6:45; I Cor. 2:9, 10, 12; I Cor. 11:13-14.
VII. Na Escritura não são todas as coisas igualmente claras em si, nem do mesmo modo evidentes a todos; contudo, as coisas que precisam ser obedecidas, cridas e observadas para a salvação, em um ou outro passo da Escritura são tão claramente expostas e explicadas, que não só os doutos, mas ainda os indoutos, no devido uso dos meios ordinários, podem alcançar uma suficiente compreensão delas.
II Pedro 3:16; Sal. 119:105, 130; Atos 17:11.
(...)
IX. A regra infalível de interpretação da Escritura é a mesma Escritura; portanto, quando houver questão sobre o verdadeiro e pleno sentido de qualquer texto da Escritura (sentido que não é múltiplo, mas único), esse texto pode ser estudado e compreendido por outros textos que falem mais claramente.
At. 15:15; João 5:46; II Ped. 1:20-21.
X. O Juiz Supremo, pelo qual todas as controvérsias religiosas têm de ser determinadas e por quem serão examinados todos os decretos de concílios, todas as opiniões dos antigos escritores, todas as doutrinas de homens e opiniões particulares, o Juiz Supremo em cuja sentença nos devemos firmar não pode ser outro senão o Espírito Santo falando na Escritura.
Mat. 22:29, 31; At. 28:25; Gal. 1:10.
Confissão de Fé de Westminster”, disponível no sítio virtual Monergismo.com, no endereço eletrônico http://www.monergismo.com/textos/credos/cfw.htm, sem destaques no original.

O artigo IV trata da chamada auto-autenticação da Bíblia, rejeitando o papel da autoridade da Igreja (especialmente da Igreja Católica Apostólica Romana) em reunir e declarar autênticos os textos bíblicos.

O artigo VI já proclama o cerne do Sola Scriptura, ao dizer que “Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela”. Merece destaque o advérbio absoluto “todo”.

Mas o mesmo enunciado reconhece que há coisas que podem não estar expressamente na Bíblia, e que podem ser claramente deduzidas dela (implícitas).

A noção de que há princípios e mandamentos implícitos na Bíblia é uma visão realista e ponderada, mas, a rigor não é suficiente para afastar as tradições do Catolicismo. Na verdade, todos os ensinamentos do Igreja Católica Apostólica Romana, como se pode ver do respectivo Catecismo, entre outros documentos da Igreja, têm fundamento na Escritura, ora explícito, ora implícito, tendo sido confirmados pela Tradição, e reconhecidos pelo Magistério.

A prática tanto dos Presbiterianos quanto dos demais protestantes, entretanto, vem sendo bem mais restritiva, e a ideia de que há ensinamentos implícitos na Bíblia não é em geral bem vista pelos irmãos separados. O Fundamentalismo, que viria no final do Século XIX, é a expressão mais aprimorada dessa aversão, que destaca de modo visível a divisão entre Catolicismo e Protestantismo.

Prosseguindo, encontra-se no mesmo artigo a declaração de que à “Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições dos homens”.

A ideia aqui é, claramente, rejeitar a Tradição da Igreja Católica e seu Magistério.

Entretanto, a questão que surge, como visto, é se essas tradições não estão em conformidade à Bíblia, podendo ser a ela reconduzidas, e, portanto, reconhecidas como implicitamente determinadas ou, quando menos, permitidas pelo texto da Escritura.

Outro aspecto desse artigo: ele reconhece, prudentemente, que há coisas que não estão na Bíblia, como “quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja”, para as quais é necessária a prudente ordenação...

Aqui se vê que algum magistério eclesiástico é necessário e essa necessidade é reconhecida. Portanto, o que o documento reconhece implicitamente é que as tradições católicas serão apenas substituídas pelas calvinistas presbiterianas, segundo o juízo das respectivas autoridades eclesiásticas.

O artigo VII já trata da clareza da Bíblia, um outro subprincípio do Sola Scriptura, como o da auto-autenticação e o do livre exame – pois se a Bíblia não é clara, ou não se autentica a si mesma, ou precisa de um intérprete autêntico (com autoridade), o Magistério da Igreja e a Tradição são necessários, conforme sempre entendeu a Igreja Católica Apostólica Romana.

A Confissão de Fé de Westminster adota uma saída engenhosa para tentar driblar a realidade inevitável de que a Bíblia contém trechos de difícil entendimento, especialmente para pessoas tão distantes do mundo em que o texto foi escrito. Isso sem falar em muitos trechos, em princípio, incompatíveis entre si.

A saída adotada foi reconhecer que “não são todas as coisas igualmente claras em si, nem do mesmo modo evidentes a todos”, e, por outro lado, afirmar que “as coisas que precisam ser obedecidas, cridas e observadas para a salvação” estão em algum ponto da Escritura claramente expostas e acessíveis a qualquer um.

Como assinalado, é uma saída engenhosa, dizer que o essencial está claro. Assim, já que aquilo que é obscuro não tem importância, pode ser relegado a teólogos, especialistas, etc., que vão cuidar de coisas que não são tão relevantes, minúcias que nada alteram da “verdadeira doutrina”.

Engenhoso mas falho em vários aspectos. Afinal, se a Bíblia “é a palavra de Deus”, como está no artigo IV da mesma Confissão, então toda a Bíblia o é, e não apenas parte dela. Ora, como se pode desprezar partes dela então? Ademais, se um trecho é obscuro e não é compreendido, como saber se ele não muda o sentido do que é transmitido por outro trecho? Como conhecer o impacto desse texto em relação ao todo? Como saber que ele é realmente insignificante?

O artigo IX também proclama um subprincípio do Sola Scriptura ao rejeitar qualquer recurso externo para a interpretação da Bíblia, afirmando que “A regra infalível de interpretação da Escritura é a mesma Escritura”.

É uma crença de difícil defesa hoje, quando os próprios protestantes tendem a reconhecer a importância de ter em mente o contexto para o entendimento do texto bíblico, sabendo-se que o conhecimento do contexto depende de estudos extrabíblicos (História, Arqueologia, Geografia).

Ademais, não faltam partes entre si aparentemente contraditórias, sendo necessário um critério externo de compatibilização. Afinal, o que dizer por exemplo do mandamento de amar os inimigos e do extermínio dos povos de Canaã na época de Josué?

Fato é que enquanto as Sociedades Bíblicas do Século XIX insistiam em distribuir o texto da Bíblia sem quaisquer notas, que poderiam supostamente perverter o seu sentido (uma aplicação do Sola Scriptura à risca), hoje se multiplicam nas editoras voltadas às publicações da linha protestante as “Bíblias de Estudo”, em que o texto bíblico vem acompanhado de notas sobre o contexto e o sentido do texto (muito elogiáveis no geral, diga-se de passagem), ou como ele é entendido por determinado estudioso, ou como deve ser aplicado na vida prática.

É o que explica a Sociedade Bíblica do Brasil em relação à tradicionalíssima tradução de João Ferreira de de Almeida atualizada e publicada pela SBB:

Entretanto, essa tradição de incluir esboços e notas foi interrompida posteriormente. Com certeza isso se deveu, em grande parte, à prática adotada pela Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira, fundada em 1804, de “encorajar a mais ampla distribuição das Escrituras Sagradas, sem notas e sem comentários”. Porém, em meados do século XX, essa tendência passou a ser revertida, e as Sociedades Bíblicas Unidas, entre elas a Sociedade Bíblica do Brasil, passaram a publicar Bíblias com notas, destacando-se entre elas as Bíblias de Estudo. Em Bíblias de Estudo cujas notas são de responsabilidade exclusiva da Sociedade Bíblica, mantém-se o propósito de não entrar na discussão de doutrinas específicas desta ou daquela denominação cristã. O melhor exemplo disso é a Bíblia de Estudo Almeida.

Já a chamada “Bíblia Apologética de Estudo”, produzida pelo Instituto Cristão de Pesquisas, contém extensas notas que acompanham o texto bíblico a fim de defender a “ortodoxia” protestante contra as mais diversas “heresias” que reivindicam apoio nos mesmos textos.

Pelo visto, a clareza da Escritura, como subprincípio do Sola Scriptura, na prática, caiu em descrédito. Subsiste, é claro, no Fundamentalismo que, para poder se esconder dos resultados de uma interpretação crítica do texto bíblico, apoiada pela pesquisa histórica, prega uma interpretação literalista do texto, como será melhor examinado adiante.

O artigo X da Confissão de Fé de Westminster proclama o que se poderia chamar mais propriamente de “supremacia da Escritura” do que “somente a Escritura” (Sola Scriptura), ao afirmar (tal como Lutero) que o juiz de toda controvérsia religiosa, decretos de concílios, opiniões dos antigos escritores, doutrinas de homens e opiniões particulares “não pode ser outro senão o Espírito Santo falando na Escritura” (ou seja, o texto da Bíblia).

A questão que surge é óbvia: o texto não julga nada sem um juiz que o interprete.

Basta lembrar o que acontece com o texto da Constituição da República Federativa do Brasil (e acontece com qualquer outro país que tenha uma constituição escrita). Quando uma lei é aprovada seus autores supõem-na constitucional (caso contrário não a aprovariam). Mas frequentemente surgem vozes em sentido contrário e a lei é questionada na Justiça. A controvérsia precisa ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal agindo como Corte Constitucional. E não raras vezes as opiniões se dividem entre os próprios Ministros do STF.

O fato é que, como o texto da Constituição, o texto bíblico não pode julgar sem um intérprete (que na verdade é quem julga, embora se baseie no texto).

A História prova que a interpretação bíblica é complexa, e muitas conclusões contraditórias são por vezes sustentadas. A segmentação crescente do Protestantismo é a consequencia inevitável do livre exame.

Demais disso, existe uma diferença monstruosa entre o texto bíblico ser o “juiz” (seria melhor dizer critério, parâmetro, ou fundamento) e tudo necessariamente precisar ser determinado pela Bíblia.

Veja-se, a Constituição é o “juiz” (novamente, o parâmetro, o fundamento para o julgamento) de todas as leis do país, mas isso não significa que as leis, regulamentos, normas administrativas, não extendam o conteúdo do Ordenamento Jurídico criado pela Constituição. No entanto, são legítimos enquanto não lhe contrariem.

Novamente, o enunciado não é bastante para afastar as tradições e as doutrinas que se desenvolveram no âmbito católico, a não ser mediante uma interpretação particular da Escritura. Não é a Escritura o critério então, mas uma particular interpretação dela, que permitiu ao Presbiterianismo (pois tratamos aqui da Confissão de Fé de Westminster, de origem Presbiteriana), tal como o Luteranismo antes dele, e o Protestantismo em geral, afastar-se do Catolicismo.

Definitivamente, pelo exame da Confissão de Fé de Westminster, ao lado da doutrina luterana e das anteriores confissões “reformadas”, constata-se que o Protestantismo, efetivamente não substituiu a Tradição e o Magistério da Igreja Católica Apostólica Romana pela Bíblia, como sempre apontou o seu discurso. Substituiu-os sim por outras tradições e outros magistérios. O texto bíblico foi considerado fonte primária sim, mas interpretado sob a ótima de Lutero, Zuínglio, Calvino, e outros líderes protestantes que se seguiram.

Em todo caso, parece-nos que a Confissão de Fé de Westminster apresenta com clareza e honestidade o princípio do Sola Scriptura, com seu sentido, suas falhas e contradições. Sua doutrina marca indelevelmente o Protestantismo (não apenas o Presbiterianismo), mesmo quando suas proclamações não são integralmente acolhidas.


Continua...

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários que manifestarem discordância mas que não apresentarem argumentos racionais sobre o conteúdo do artigo serão sumariamente excluídos, ressalvada decisão do Administrador em sentido contrário. Qualquer comentário poderá ser excluído a qualquer tempo por vontade livre do Administrador.