Porque
nem tudo está na bíblia
A
Bíblia é o livro sagrado para o cristão, mas nem tudo em matéria
de fé e de conduta para o cristão está na Bíblia.
A
proposta de que tudo que importa para o cristão em matéria de fé e
de moral está na Bíblia, e somente nela, com a exclusão da
Tradição e do Magistério da Igreja, é chamada de Sola
Scriptura, expressão
em latim que significa
“Somente
a Escritura”, ou, como alguns traduzem, “a Escritura Sozinha”,
apenas a Bíblia.
Evidentemente,
partindo desse princípio, a própria Bíblia necessariamente deveria
ensinar exatamente isso. Porém isso é impossível.
De
fato, é esquecido pela maioria das pessoas que a Bíblia não caiu
do céu, escrita, editada, numerada, encadernada, com índice, notas,
etc. Não! Ao longo de cerca de 2000 anos homens dos mais variados
tempos e lugares (de Moisés a São João Evangelista) se dedicaram
a, sob inspiração do Espírito Santo, e usando de suas capacidades
intelectuais e do conhecimento e perspectiva de que dispunham,
escrever textos que, depois, foram reconhecidos pela comunidade de fé
como inspirados por Deus.
Esses
textos eram escritos, cada qual a seu tempo, cada qual num rolo. Isso
mesmo, num rolo. Esse rolo era desenrolado e lido. Por isso na Bíblia
encontramos:
“no
rolo do livro está escrito a meu respeito ...”
(Salmo 40, 8); “vi
(...) um livro, um rolo escrito por dentro e por fora...”
(Apocalipse 5, 1); "foi-lhe
dado o livro do profeta Isaías. Desenrolando o livro ..."
(Lucas 4,17, Bíblia Sagrada Ave Maria).
Esses
rolos circulavam separados, e eram reunidos em coleções,
bibliotecas, nas sinagogas dos judeus, e depois nas igrejas dos
cristãos. Mas eles iam surgindo e circulando independentemente. Cada
um era um livro, rolo, independente. Por isso mesmo cada grande parte
da Bíblia é chamada de livro, e não de parte. A Bíblia, Livros em
grego, é uma biblioteca, hoje editada e reunida em um volume
encadernado. Mas isso só ocorreu muito tempo depois.
É
verdade que o Antigo Testamento estava pronto na época de Cristo. E
mais ou menos no final do século I (lá pelo ano 100) estavam
escritos todos os livros do Novo Testamento. Só que eram livros,
rolos, textos separados, que circulavam independentes uns dos outros.
Até
o século IV (ou seja, entre os anos 300 e 400), embora esses
escritos estivessem prontos, como foram escritos por pessoas
diferentes, em locais e momentos diferentes, eles ainda não haviam
sido reunidos. Ainda não havia sido estabelecido que eles
integrariam a Bíblia, e que esta teria apenas esses livros, e não
tantos outros que circulavam na época.
Assim,
ao longo do século IV a Igreja definiu a lista desses livros,
mediante a orientação de suas autoridades e dos concílios
realizados na época. Isso se deveu em grande medida à circulação
de diversos livros da seita dos gnósticos, que se passavam por
evangelhos.
Nessa
época também o livro ganhava um novo formato, não mais de rolo,
mas de códice (ou códex): várias folhas de papel dobradas, postas
umas após outras, costuradas juntas, e enfim encadernadas com a
colocação de uma capa externa. Esse formato, que é o que nós
utilizamos até hoje, permitiu que um volume muito maior de texto
fosse reunido num único volume.
E
foi nessa época que os livros da Bíblia, antes soltos e
independentes, passaram a ser reunidos em um ou poucos volumes, em
formato de códice. O livro conhecido como Códice Vaticano, e outro
conhecido como Códice Sinaítico, as bíblias mais antigas que
chegaram até nós, são dessa época.
Ora,
quando cada um daqueles textos, ou livros, foi escrito (até o ano
100 mais ou menos), não havia Bíblia. Não era possível então que
qualquer deles enunciasse que tudo está na Bíblia, que somente o
que está na Bíblia deve ser considerado pelo cristão para sua fé
e sua conduta, etc. Ou seja, “Somente a Bíblia” é algo que não
está na Bíblia! Não está de jeito nenhum, por simples
impossibilidade lógica.
Assim,
quando lemos na Bíblia, na segunda carta que São Paulo escreveu a
São Timóteo, que “toda
Escritura é inspirada por Deus e é útil para ensinar, para
argumentar, para corrigir, para educar conforme a justiça”
(2 Timóteo 3, 16), temos a exaltação do valor da Bíblia, que
nessa época era apenas o Antigo Testamento, mas não a proclamação
da sua suficiência e exclusividade. São Paulo não está advertindo
São Timóteo de que nada mais a não ser a Escritura deve ser
considerado, até porque, os seus ensinamentos ainda não faziam
parte dessa Escritura.
E
quando lemos na Bíblia que nada deve ser acrescentado ou subtraído
deste livro (Apocalipse 22, 18-19) ou desta Lei (Deuteronômio 4,2),
tais textos estão se referindo ao próprio livro em que isso está
escrito. Não existia a Bíblia como livro para que essas passagens
se referissem a ela.
Do
mesmo modo, quando lemos na Bíblia que ninguém deve pregar um
evangelho diferente (Gálatas 1, 6-9), o texto, da autoria de São
Paulo, não está proclamando a exclusividade dos evangelhos de
Mateus, Marcos, Lucas e João, e muito menos repelindo a Tradição
Apostólica ou o Magistério da Igreja. Ele escreve lá pelos anos 50
depois de Cristo, e os Evangelhos somente seriam escritos entre os
anos 60 e 100. Ele está apenas defendendo seu anúncio da boa
notícia (evangelho, em grego) de que a salvação veio por meio do
sacrifício de Cristo e da sua ressurreição, contra os que
pretendiam impor aos não judeus todas as práticas dos judeus como
condição para a salvação. Esse era o evangelho diferente que São
Paulo repelia. A leitura completa da Carta aos Gálatas esclarece
isso.
Enfim,
nenhum desses textos bíblicos e nem nenhum outro apoia ou poderia
apoiar a proposta de que todo ensinamento de fé e de moral para o
cristão está na Bíblia. Qualquer texto bíblico considerado em seu
devido contexto necessariamente tem um sentido diferente disso.
O
que a Bíblia contém é justamente o contrário. Ela mostra que
Jesus, o Cristo, instituiu a Sua Igreja sobre Pedro, o primeiro Papa
(“tu
és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja”,
Mat. 16, 18),
e que lhe conferiu autoridade (“tudo
o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que
desligardes na terra será desligado no céu”,
Mat. 16, 19). Ela mostra também que Jesus lhe prometeu o Espírito
Santo, que ensinaria muitas outras coisas (João 16, 12-13). E lemos
também, em Atos, capítulo 15, como, diante de uma divergência
sobre a correta doutrina, a questão é levada a Pedro e os
Apóstolos, e como eles decidem e ensinam com a autoridade da Igreja
de Cristo. Eles dizem: “decidimos,
o Espírito Santo e nós”
(Atos 15, 28).
A
Bíblia, portanto, não ensina, e nem poderia ensinar, que apenas o
que se encontra nela deve ser considerado pelo cristão. Ela ensina,
entretanto, que tudo quanto é ensinado pela Igreja instituída por
Jesus Cristo deve ser norma para o cristão.
Cledson
Moreira Galinari
Nota:
citações bíblicas da Bíblia da CNBB, exceto quando expresso em
contrário.
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