sábado, 7 de março de 2015

PORQUE NEM TUDO ESTÁ NA BÍBLIA

Porque nem tudo está na bíblia

A Bíblia é o livro sagrado para o cristão, mas nem tudo em matéria de fé e de conduta para o cristão está na Bíblia.

A proposta de que tudo que importa para o cristão em matéria de fé e de moral está na Bíblia, e somente nela, com a exclusão da Tradição e do Magistério da Igreja, é chamada de Sola Scriptura, expressão em latim que significaSomente a Escritura”, ou, como alguns traduzem, “a Escritura Sozinha”, apenas a Bíblia.

Evidentemente, partindo desse princípio, a própria Bíblia necessariamente deveria ensinar exatamente isso. Porém isso é impossível.

De fato, é esquecido pela maioria das pessoas que a Bíblia não caiu do céu, escrita, editada, numerada, encadernada, com índice, notas, etc. Não! Ao longo de cerca de 2000 anos homens dos mais variados tempos e lugares (de Moisés a São João Evangelista) se dedicaram a, sob inspiração do Espírito Santo, e usando de suas capacidades intelectuais e do conhecimento e perspectiva de que dispunham, escrever textos que, depois, foram reconhecidos pela comunidade de fé como inspirados por Deus.

Esses textos eram escritos, cada qual a seu tempo, cada qual num rolo. Isso mesmo, num rolo. Esse rolo era desenrolado e lido. Por isso na Bíblia encontramos: “no rolo do livro está escrito a meu respeito ...” (Salmo 40, 8); “vi (...) um livro, um rolo escrito por dentro e por fora... (Apocalipse 5, 1); "foi-lhe dado o livro do profeta Isaías. Desenrolando o livro ..." (Lucas 4,17, Bíblia Sagrada Ave Maria).

Esses rolos circulavam separados, e eram reunidos em coleções, bibliotecas, nas sinagogas dos judeus, e depois nas igrejas dos cristãos. Mas eles iam surgindo e circulando independentemente. Cada um era um livro, rolo, independente. Por isso mesmo cada grande parte da Bíblia é chamada de livro, e não de parte. A Bíblia, Livros em grego, é uma biblioteca, hoje editada e reunida em um volume encadernado. Mas isso só ocorreu muito tempo depois.

É verdade que o Antigo Testamento estava pronto na época de Cristo. E mais ou menos no final do século I (lá pelo ano 100) estavam escritos todos os livros do Novo Testamento. Só que eram livros, rolos, textos separados, que circulavam independentes uns dos outros.

Até o século IV (ou seja, entre os anos 300 e 400), embora esses escritos estivessem prontos, como foram escritos por pessoas diferentes, em locais e momentos diferentes, eles ainda não haviam sido reunidos. Ainda não havia sido estabelecido que eles integrariam a Bíblia, e que esta teria apenas esses livros, e não tantos outros que circulavam na época.

Assim, ao longo do século IV a Igreja definiu a lista desses livros, mediante a orientação de suas autoridades e dos concílios realizados na época. Isso se deveu em grande medida à circulação de diversos livros da seita dos gnósticos, que se passavam por evangelhos.

Nessa época também o livro ganhava um novo formato, não mais de rolo, mas de códice (ou códex): várias folhas de papel dobradas, postas umas após outras, costuradas juntas, e enfim encadernadas com a colocação de uma capa externa. Esse formato, que é o que nós utilizamos até hoje, permitiu que um volume muito maior de texto fosse reunido num único volume.

E foi nessa época que os livros da Bíblia, antes soltos e independentes, passaram a ser reunidos em um ou poucos volumes, em formato de códice. O livro conhecido como Códice Vaticano, e outro conhecido como Códice Sinaítico, as bíblias mais antigas que chegaram até nós, são dessa época.

Ora, quando cada um daqueles textos, ou livros, foi escrito (até o ano 100 mais ou menos), não havia Bíblia. Não era possível então que qualquer deles enunciasse que tudo está na Bíblia, que somente o que está na Bíblia deve ser considerado pelo cristão para sua fé e sua conduta, etc. Ou seja, “Somente a Bíblia” é algo que não está na Bíblia! Não está de jeito nenhum, por simples impossibilidade lógica.

Assim, quando lemos na Bíblia, na segunda carta que São Paulo escreveu a São Timóteo, que “toda Escritura é inspirada por Deus e é útil para ensinar, para argumentar, para corrigir, para educar conforme a justiça (2 Timóteo 3, 16), temos a exaltação do valor da Bíblia, que nessa época era apenas o Antigo Testamento, mas não a proclamação da sua suficiência e exclusividade. São Paulo não está advertindo São Timóteo de que nada mais a não ser a Escritura deve ser considerado, até porque, os seus ensinamentos ainda não faziam parte dessa Escritura.

E quando lemos na Bíblia que nada deve ser acrescentado ou subtraído deste livro (Apocalipse 22, 18-19) ou desta Lei (Deuteronômio 4,2), tais textos estão se referindo ao próprio livro em que isso está escrito. Não existia a Bíblia como livro para que essas passagens se referissem a ela.

Do mesmo modo, quando lemos na Bíblia que ninguém deve pregar um evangelho diferente (Gálatas 1, 6-9), o texto, da autoria de São Paulo, não está proclamando a exclusividade dos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, e muito menos repelindo a Tradição Apostólica ou o Magistério da Igreja. Ele escreve lá pelos anos 50 depois de Cristo, e os Evangelhos somente seriam escritos entre os anos 60 e 100. Ele está apenas defendendo seu anúncio da boa notícia (evangelho, em grego) de que a salvação veio por meio do sacrifício de Cristo e da sua ressurreição, contra os que pretendiam impor aos não judeus todas as práticas dos judeus como condição para a salvação. Esse era o evangelho diferente que São Paulo repelia. A leitura completa da Carta aos Gálatas esclarece isso.

Enfim, nenhum desses textos bíblicos e nem nenhum outro apoia ou poderia apoiar a proposta de que todo ensinamento de fé e de moral para o cristão está na Bíblia. Qualquer texto bíblico considerado em seu devido contexto necessariamente tem um sentido diferente disso.

O que a Bíblia contém é justamente o contrário. Ela mostra que Jesus, o Cristo, instituiu a Sua Igreja sobre Pedro, o primeiro Papa (“tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja”, Mat. 16, 18), e que lhe conferiu autoridade (“tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu”, Mat. 16, 19). Ela mostra também que Jesus lhe prometeu o Espírito Santo, que ensinaria muitas outras coisas (João 16, 12-13). E lemos também, em Atos, capítulo 15, como, diante de uma divergência sobre a correta doutrina, a questão é levada a Pedro e os Apóstolos, e como eles decidem e ensinam com a autoridade da Igreja de Cristo. Eles dizem: “decidimos, o Espírito Santo e nós” (Atos 15, 28).

A Bíblia, portanto, não ensina, e nem poderia ensinar, que apenas o que se encontra nela deve ser considerado pelo cristão. Ela ensina, entretanto, que tudo quanto é ensinado pela Igreja instituída por Jesus Cristo deve ser norma para o cristão.

Cledson Moreira Galinari


Nota: citações bíblicas da Bíblia da CNBB, exceto quando expresso em contrário.

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