I
- Lutero e o Luteranismo
Os
chamados cinco Solas,
são normalmente atribuídos a Lutero, embora ele mesmo não tenha
enunciado, por exemplo, o Sola
Scriptura, de
maneira abstrata, mas apenas incidentalmente tratando de temas
variados em seus escritos.
Já
em 31 de outubro de 1517 ele escreveu, entre as teses que apresentou
questionando as práticas em relação às indulgências:
18. Parece não ter sido
provado, nem por
meio de argumentos racionais nem da Escritura,
que elas [as almas no purgatório] se encontram fora do estado de
mérito ou de crescimento no amor.
Lutero, Martinho, "Obras
selecionadas, volume 1, os primórdios, escritos de 1517 a 1519",
São Leopoldo: Editora Sinodal, Porto Alegre: Concórdia Editora,
1987, p. 24, sem destaque no original.
No
final de 1518, Lutero escreveu ainda em sua "Apelação
do Fr. Martinho Lutero ao Concílio":
“O poder do papa
não está contra ou acima da majestade da Escritura e da verdade,
mas a favor e abaixo dela”.
(Idem, p. 231).
E
em 1521 apresentou sua célebre resposta em Worms:
Visto que Vossa S[ereníssima]
Majestade e Vossas Senhorias exigem uma resposta simples, quero dá-la
sem cornos e sem dentes do seguinte modo: A
não ser que seja convencido por testemunhos das Escrituras ou por
argumento evidente
(pois não acredito nem no papa nem nos concílios exclusivamente,
visto que é certo que os mesmos erraram muitas vezes e se
contradisseram a si mesmos) — estou
vencido pelas Escrituras por mim aduzidas e minha consciência está
presa nas palavras de Deus
— não posso nem quero retratar-me de nada, porque agir contra a
consciência não é prudente nem íntegro.
"Discurso
do Dr. Martinho Lutero perante o Imperador Carlos e os príncipes na
assembléia de Worms",
1521, em Lutero, Martinho, "Obras
selecionadas, volume 6",
São Leopoldo: Editora Sinodal, Porto Alegre: Concórdia Editora,
1996, p. 126, sem destaques no original.
Examinando
esses discursos, encontramos o perfil com que Lutero via o
Sola Scriptura: as
verdades cristãs devem ser determinadas pelo exame da Escritura,
admitida no máximo a “razão evidente”, e o ensinamento da
Igreja deve ser avaliado segundo a Escritura, considerando “a
compreensão totalmente livre das Escrituras”,
como ele propugna no “Comentário
de Lutero sobre a 13ª tese a respeito do poder do Papa (enriquecido
pelo autor)” de
1519 (“Obras
Selecionadas, volume 1”,
p. 315).
Em
1580, algumas décadas
após a morte de Lutero (em
1546),
as dissenções
entre os próprios luteranos levaram-nos à elaboração da chamada
Fórmula de Concórdia, na qual exporiam a visão luterana do Sola
Scriptura:
Da Suma, Regra e Norma de
Acordo com a Qual Deve Ser Julgada Toda Doutrina e Devem Ser
Explicados e Decididos, de Maneira Cristã, os Erros Que Surgiram.
1. Cremos,
ensinamos e confessamos que somente os escritos proféticos e
apostólicos do Antigo e do Novo Testamento são a única regra e
norma, segundo a qual devem ser ajuizadas e julgadas, igualmente,
todas as doutrinas e todos os mestres,
conforme está escrito: “Lâmpada para os meus pés é a tua
palavra, e luz para os meus caminhos”, SI 119. E S. Paulo: “Ainda
que um anjo vindo do céu vos pregue diversamente, seja anátema”,
Gl
l.
Outros escritos, entretanto,
dos antigos ou dos novos mestres, seja qual for o nome deles, não
devem ser equiparados à Escritura Sagrada, porém, todos lhe devem
ser completamente subordinados, não devendo ser recebidos
diversamente de ou como mais do que testemunhas da maneira como e
quanto aos lugares onde essa doutrina dos apóstolos e profetas foi
preservada nos tempos pós-apostólicos.
2. E, visto que, imediatamente
após os tempos dos apóstolos e ainda em vida deles, penetram falsos
mestres e hereges, contra os quais se compuseram, na igreja
primitiva, Symbola, isto é, confissões breves e categóricas, que
foram consideradas como a fé e a confissão unânimes, universais,
cristãs, da igreja ortodoxa e verdadeira, a saber, o
Símbolo Apostólico, o Símbolo Niceno e o Símbolo Atanasiano, nós
os confessamos por nossos
e rejeitamos, com isso, todas as heresias e doutrinas introduzidas na
igreja de Deus contrariamente a eles.
3. Quanto
ao cisma, em matéria de fé, ocorrido em nosso tempo, consideramos
como consenso e declaração unânimes de nossa fé e confissão
cristãs,
especialmente contra o papado e seu falso culto, idolatria e
superstição, e contra outras seitas, e
como nosso símbolo
desse tempo, a primeira e inalterada Confissão de Augsburgo,
entregue ao Imperador Carlos V, em Augsburgo, no ano de 1530,
por ocasião da grande dieta imperial, juntamente com a Apologia dela
e os Artigos redigidos em Esmalcalde, no ano de 1537, e, naquele
tempo, subscritos pelos principais teólogos.
E visto que tais assuntos
concernem também ao leigo comum e à salvação de sua alma,
abraçamos,
outrossim, o Catecismo Menor e o Maior do Dr. Lutero, conforme
incluídos em suas obras, como a bíblia dos leigos.
Contêm eles tudo o que a Sagrada Escritura trata mais
desenvolvidamente e que o cristão tem de saber para a sua salvação.
Com
esse padrão, conforme acima participado, devem concordar todas as
doutrinas, e o que lhe é contrário deve ser rejeitado e condenado
como oposto à unânime declaração de nossa fé.
Dessa
maneira, retém-se a distinção entre a Sagrada Escritura do Antigo
e do Novo Testamento e todos os demais escritos, ficando somente a
Escritura Sagrada como o único juiz, regra e norma, de acordo com
que, como única pedra de toque, todas as doutrinas devem e têm de
ser discernidas e julgadas quanto a serem boas ou más, corretas ou
incorretas.
Os
demais Symbola, todavia, e os outros escritos citados, não são
juizes como o é a Escritura Sagrada, porém, apenas testemunho e
exposição da fé, que mostram como, em cada tempo, a Escritura
Sagrada foi entendida e explicada na igreja de Deus, no respeitante a
artigos controvertidos, pelos que, então, viviam, e ensinamentos
contrários a ela rejeitados e condenados."
Drehmer,
Darci (editor), "Livro
de Concórdia",
São Leopoldo: Sinodal, Canoas: Ulbra, Porto Alegre: Concórdia,
2006, pp. 499-501, sem negritos no original.
É
importante destacar desse texto a superioridade da Escritura, a
adesão aos símbolos anteriores da Igreja enumerados, e a manutenção
da Confissão de Augsburgo e dos catecismos de Lutero como “a
bíblia dos leigos”.
Isso
mostra que no Luteranismo, o Sola
Scriptura é o
ponto de partida, permitindo a ruptura com o Catolicismo. Mas, a
partir dessa ruptura o Luteranismo criou sua própria doutrina e
tradição. Muito embora mantenha-se proclamando a superioridade da
Escritura como único juiz de todos os outros escritos (que lhe são
então subordinados), o Luteranismo adotou uma doutrina, a qual,
rejeitada, exclui sem dúvida a comunhão entre a pessoa e a
congregação.
Continua...
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